Na quinta-feira, andei a passo normal até o metrô, resolvido a descer normalmente as escadas, pegar o trem rumo a Manhattan e refazer velhos caminhos de 2000. E Anne estava lá, seu corpo perfilado diante de uma viga vertical, com seu casacão aveludado e uma boina em vez do gorro de lã, sua cabeleira cheia. O trecho central da compridíssima plataforma (de uma entrada não se enxerga a outra) está sempre vazio; os passageiros se concentram do lado de um dos dois acessos. Na entrada de Bedford não havia mais de quinze ou vinte pessoas. Quando a vi, fiquei parado, nervoso, sem atinar no que poderia lhe dizer - três dias desejando encontrá-la e na hora não saber. Reagi quando ouvi muito ao longe o rumor que antecede à chegada do trem. Então me aproximei dela, dei-lhe um oi de uma certa distância, um oi alongado, como se eu fosse um estranho e ela pudesse se sobressaltar. Anne me cumprimentou de volta, surpresa de verdade.
-Senhora psicóloga - eu disse, num tom entre reverente e provocador (do catálogo dos tímidos).
Ela me olhou processando as palavras, como se eu tivesse errado a profissão.
-Senhor
escritor - retrucou. Respondi puxando os cantos da boca por uma fracção de segundo.
-Estava pensando em você - eu disse, sem querer ser levado a sério. - A caminho do trabalho?
-Ãhn ãhn. - Anne adotou uma postura mais erguida, que nela parecia natural: - E você?
-Vou dar uma caminhada. Depois volto para o café.
-Com este frio?
-Com este frio. Não parece que o tempo vá mudar. - Eu ia dar mesmo uma caminhada, só não podia lhe dizer à procura de quê.
-Está bem, vai lhe fazer bem.
Fiz cara de não entender.
-Caminhar. Faz bem para todo mundo - Anne disse.
Assenti com a cabeça, de lábios fechados. Talvez estivesse pensando em seus pacientes.
Quis perguntar-lhe sobre eles. Saber que tipo de psicóloga ela era. Saber se seus pacientes eram as únicas pessoas que ela via. Imaginei-a no consultório e de noite em casa, revisando as anotações do dia. Sozinha.
-Sabe? - eu disse sorrindo. - Sempre quis ter uma psicóloga.
Anne me fitou estreitando os olhos. Sorriu também:
-Psicóloga
mulher? - Não me deixou responder. - Qual é o problema do senhor?
Solidão, o mal do século (mas, que século?), ansiedade, depressão.
-
Writer's block - eu disse.
-Ah, isso. - Dor de cabeça teria causado um efeito maior.
Ela olhou em volta, inclinou-se para mim, sussurrou:
-Eu não trato amigos.
Senti seu sopro na orelha, me arrepiei.
-Também não trato vizinhos - logo emendou.
O trem estava entrando com grande estrondo na estação.
-Isso é norma, está nos livros?
-É facultativo - ela disse, levantando a voz.
Entramos juntos no vagão, sentamos juntos. Anne não tirou o casaco, nem as luvas, só a boina. Pude ver de perto seus cabelos, senti um cheiro adocicado bom. Diferente do verão, quando o calor na plataforma é sufocante e as pessoas esperam ansiosas pelos trens, agora o frio não dá trégua, é tão intenso aqui abaixo como na superfície, ou então demora muito para sair dos corpos. Com todos os passageiros agasalhados, os vagões parecem mais lotados do que realmente estão, e as pessoas, volumosas, ficam coladas as umas às outras, criando cadeias ininterruptas de impermeáveis, felpudos, couros forrados, lãs. Através de camadas e camadas de tecido, sinto o braço e o ombro de Anne, que tem os antebraços em cima do bolso, uma mão ancorada na outra. Eu sento direito, tentando não apertar o jovem corpulento do outro lado, que usa fones de ouvido por cima de um boné com viseira de time de futebol. Minha vizinha não fala. Olha para o alto, eu olho também: os anúncios de um filme de terror adolescente e do aquário de Coney Island, com a foto de um tubarão mostrando as mandíbulas. Ouço o ruído pneumático, intermitente do deslizar sobre os trilhos. O silêncio no vagão só não é constrangedor porque é compartilhado por pessoas igualmente sonolentas ou entediadas.
-Problemas com sua múmia, então? - Anne diz, baixinho.
-Sim. Com seu namorado, mais bem. Ele é quem sabe da história. Eu só posso conjeturar.
-Não é esse o trabalho do escritor?
Anne gosta de alfinetar, eu gosto de aproveitar para contemplá-la. Usa brincos de aro grande prateados, batom suave nos lábios. As maçãs do rosto, proeminentes, dão mais vigor ainda ao seu olhar.
-Talvez. Mas quem diz que eu seja.
Anne reprime o riso. Logo diz:
-Procure ele.
-Está preso em Arequipa.
-Ele está preso? - Deixa os lábios entreabertos, os dentes brancos à mostra.
-Num sanatório.
Resumo para ela o que Alberto R. fez no museu. Falamos tão baixo que parecemos estar conspirando. Não faz mal.
-
Escreva-lhe - ela diz.
-Escrever o quê?
De pé, uma mulher lê a New Yorker dobrada, tira a luva para virar a página. Um homem lê um romance de Joseph O'Neill que eu vi em algumas livrarias, que ganhou um prêmio importante. Uma outra mulher, também de pé perto das portas, prende a atenção de Anne, que acompanha o diálogo mudo entre ela e a filha. A menina, de uns cinco anos, está sentada à nossa frente, inquieta, o rosto tristonho. Dá mostras de querer se levantar, juntar-se à mãe ou ceder-lhe o assento. A mulher parece muito cansada, está com olheiras. Faz uma careta como que agradecendo e um gesto para que a filha não saia do lugar.
-Deve ser difícil, reviver uma morta - Anne diz, de modo insuspeitado. Às vezes, aprendi com J.-P., há mais informação no tom do que nas próprias palavras ditas. E ela diz isso com uma melancolia que espanta.
-Você não acha? - ela diz girando de repente para mim. Seus cabelos esvoaçam e uns fiozinhos acariciam meu nariz.
-E fazer com que alguém se apaixone por ela...
O trajeto no segundo trem é curto, a travessia subterrânea do rio. Ambos descemos na estação de Union Square. Penso em inventar uma destinação ao norte, mudar o passeio. Mas desisto. Anne, ao fim e ao cabo, vai trabalhar. Eu talvez também. Despedimos-nos num cruzamento de galerias (ela me estende a mão), os únicos parados em meio ao turbilhão. Ela segue em direção Uptown. Quando já está de costas, lembro:
-A música que você escuta, o que é?
Ela não se volta.
-Anne!
Ela vira o rosto apenas o necessário, o instante justo para dizer:
-É brasileira!
Saio do lado da praça. Ao meu redor, as pessoas continuam a andar depressa. Logo as ruas desta parte da cidade ficarão desertas. Os empregados não deixarão seus postos até o fim do expediente (não sairão nem para almoçar); os estudantes da NYU se encerrarão em suas respectivas faculdades. Atravesso até a loja da Virgin para tomar o café da manhã. Faltam cozy cups em Manhattan. Deve havê-los, escondidos em ruazinhas do East ou o Greenwich Village; de resto, só há Starbucks, lojas de redes de lanchonetes, cafés de livrarias ou de museus. São mais das 9 h e o local está vazio. Um segurança está dentro, resguardado, próximo à porta; uma moça espera atrás do balcão, fazendo nada. Ela tenta ser amável, recomenda-me un sanduíche. Está com sono, não consegue segurar uns bocejos. Dou uma olhada nas revistas. Pego um livro no primeiro expositor da loja, no limite entre esta e o café: um livro de graffiti e outras formas de arte urbana, que folhe-o enquanto como. Quase todas as intervenções são políticas, ataques diretos ou irônicos às guerras de Bush e Blair. Talvez seja o máximo que se possa fazer. Esses líderes não ficarão envergonhados por serem comparados com Hitler ou retratados com sangue jorrando das mãos; mas melhor essa revolta pública do que xingá-los quando aparecem satisfeitos na TV - como fazia minha avó, jogando o corpo para a frente, com risco de cair de sua cadeira de braços ou ter um ataque de hipertensão. Música brasileira. O que é que eu sei? Poderia procurar aqui na loja. Ou melhor, perguntar a Anne. Seria a maneira. Outra seria contar-lhe a história de Alberto R., a quem poderia tentar escrever uma carta (por que não) nessas horas infrutuosas no café.