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Queria escrever sobre este livro porque gostei e o terminei de ler. Antes dele, deixei alguns pela metade, cansado. Como
O grande, obra póstuma de Juan José Saer, um dos maiores escritores argentinos (diferente de outros, esse romance é um exercício de estilo, um
tour de force, o mais parecido à pintura hiperrealista que eu vi em literatura); ou
Leviatán, de Philip Hoare, livro de não ficção sobre baleias e literatura sobre baleias, que fez muito sucesso na Inglaterra; ou o número da revista/livro Granta dedicado aos melhores narradores jovens em espanhol. Não terminei de ler nenhum dos três. O cansaço poderia ser atribuível a mim, mais do que aos livros, mas só relativamente, pois antes li
Freedom, com enorme prazer, e agora este,
La ira del filósofo, curtindo-o do princípio ao fim.
Freedom é uma obra-mestra, um desses clássicos instantâneos (um amigo da faculdade dizia que não se escreviam mais clássicos; acho que esse é um);
La ira del filósofo, não. É "só" um baita primeiro romance, do escritor Eduardo Parra Ramírez, nascido em 1970 em Ciudad de México.
Foi refrescante, ler este livro. Semanas atrás, estava pensando em voltar a ler só os mortos, como meu irmão Oriol me aconselhou (ele sempre foi leitor, principalmente, de literatura contemporânea, mas agora, também cansado de novidades ruins, tomou a decisão drástica de ler Os miseráveis). Eu estava pensando nisso, sobretudo (além de porque li, nos últimos anos, alguns primeiros romances brasileiros, e outros nem tão primeiros, que me deixaram frio), pelo efeito que me causou esse número da Granta. Tratando-se de uma seleção de autores de sei lá quantos países (em quantos países se fala espanhol?), a revista só deveria, achei, só poderia, incluir textos bons, ou muito bons. Pensei: terá narrações realistas e narrações experimentais, vozes novas, etc. Pois bem, não sei onde tinham a cabeça os editores (nem sei o que devem estar pensando os ingleses, já que a revista saiu simultaneamente na Inglaterra, em tradução), mas parece que deixaram a tarefa (a sua tarefa) de seleção para o leitor, não separaram o joio do trigo. Daí eu fui procurando, e procurando... e o pior é que não tinha trigo (vou continuar lendo, não pode ser). Por isso foi um alívio, o Parra Ramírez...
Ganhei o livro do Sérgio, ou Sergi. O Sérgio é surpreendente. Primeiro, ele volta de Buenos Aires e me dá um livro de autor... mexicano. Segundo, no bar do Antônio me dá o presente e diz: "Para ti. Li na loja, assim, em diagonal, e achei bom". E como conseguiu encontrá-lo? La ira del filósofo ganhou o Prêmio Juan Rulfo de primeiro romance, mas a tiragem foi de 1.000 exemplares só. Quantos desses devem ter chegado a Baires? 50? O Sérgio o encontrou mesmo assim. Então, para mim, além de bom amigo, bom ator, bom professor de teatro (imagino: ainda não assisti a uma aula dele), e além, é claro, de perfeito Embaixador da Catalunha em Porto Alegre, agora ele é também "melhor catador de livros", dom raro e precioso, considerando o panorama geral. "Só tem merda", diria meu irmão (eu não posso, ele sim, sabe ser radical com graça). Talvez. Porém tem o Sérgio também.
Eduardo Parra, este cara, que não está na revista Granta, é um escritor de verdade - "de raça", dizia-se antigamente. E se não escreveu uma obra-mestra, provavelmente também não tinha essa ambição, já a escreverá. Por enquanto, escreveu um romance mais do que bom, que não se esquece logo após terminá-lo.
A história é forte e empolgante, aos poucos cada vez mais sórdida, e não está desprovida de humor. A personagem principal é Teo Mondragón, homem colérico e desesperançado, de 30 anos, solitário, distanciado dos pais (ele tem um passado, um pai militar com dois neurônios), professor de filosofia numa escola pública de um bairro suburbano. Seus alunos são personagens igualmente críveis: a maioria, "adolescentes apáticos y subnormales", "mudos, trepanados" (sem exageros: os alunos dessa escola são tarados, pequenos traficantes, chantagistas); outros (poucos) ainda podem, segundo o professor, "ser salvos", como Renata ("¿cómo puede ser que esta mocosa, con su sola cercanía, haga brotar mi parte más ridícula?") ou Mao ("de verdad experimentaba una progresiva simpatía por ese muchacho"). E o guarda da escola, Facundo, um homem generoso que serve de contraponto ao professor, também tem seu quê de especial: "El hecho contradice las más profundas creencias de Teo. Un hombre ayudando a otro. Porque sí, porque el otro lo necesita".
A linguagem é rica, oral e cheia de baixarias engraçadas (ao menos para mim, que não sou mexicano): adorei "guajalote", "chamaco pendejo"; ou "No diga pendejadas, filósofo. Si la policía me atora por lo del vídeo [é, há um vídeo na história], la libro porque no pueden comprobar una mierda. Pero si yo lo atoro a usted por chiva, no se la acaba".
Quanto ao enredo, é mais ou menos assim: Teo volta à escola onde três anos antes trabalhou temporariamente como professor. A escola não existe mais, é um prédio em ruínas ao lado de um rio fedorento (o primeiro capítulo, sobre os vapores que emanam do rio, vale por si só). Vai à procura de algo, um "presente" que um aluno escondeu para ele. Nas quadras de basquete e no prédio, lembra das aulas que deu, dos alunos mentecaptos, do cinismo (e vícios piores) dos professores. Evoca lembranças que nem sabe se faz bem em evocar. Junta as peças de tudo o que aconteceu.
Um trecho, sobre o "funcionamento" da escola:
-Qué interesante - dijo Teo -. ¿Y qué sabes de las calificaciones? ¿Es cierto que practicamente no hay reprobados?
-Sí, en este chiquero todos se gradúan. A los dueños les vale verga que aprendas o no aprendas. Cada güey que se da de baja es dinero que se les va de la bolsa. Así que si un maestro te reprueba, lo sobornas; si no afloja, lo arreglas con el dírec. En esta escuela todos sabemos que el único requisito para terminar es no morirte. Y pagar la colegiatura, claro.
E mais um, só para rir. Um "escrito sobre a existência" de um aluno-tipo de Teo:
La existencia es existir en esta vida. Yo existo por que me han pasado muchas cosas. Una de ellas fue cuando volbí de la muerte. Ívamos yo y mi hermano en el carro de mi hermano. Yo quise darme una vuelta pero no sabía manejar bien. Mi papá me dijo: no te desalejes mucho, pero yo no obedecí y agarré para la zona de los balneareos, donde va la gente a pasiar. Nunca me llamó la tensíon ir a balneareos porque no soy muy socialista con la gente, pero el chiste era salir a la carretera. En una curba nos voltiamos, porque me dieron ganas de estornudar. [...] Mi hermano salió muy herido y estuvieron a punto de imputarle un brazo, pero a mí me fue más peor porque según los doctores estube muerto unos momentos. Cuando devolví en sí, solamente recordaba que havía visto una luz que me llamava, pero no fui. Luego me dijeron que pude haver quedado en estado vegetariano o mal de mi razoncinio. Lo bueno es que estoy vivo y bien de mis facultades mentales. A veses oigo visiones, pero ya estaba así antes del choque.
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