
Aconteceu que, diante do deserto do panorama literário atual, um editor inteligente, ou ao menos bem intencionado, preferiu, antes de atirar na própria cabeça, reeditar a obra de Salinger em espanhol, e que apesar de tê-la lido, não resisti e comprei Raise High the Roof Beam, Carpenters and Seymour, An Introduction, à principio para que o editor bem intencionado recebesse a mensagem de que não tudo está perdido e seu esforço não foi em vão. Tinha lido o livro em inglês, e a verdade é que nunca tive a certeza de tê-lo entendido bem. Posso dizer que não, não o tinha entendido nem curtido totalmente, e agora sei por quê.
A primeira parte do livro, Raise high..., é brilhante, o melhor que eu li em mais de um ano, ou dois, ou três; uma demonstração tão esmagadora de talento literário que deveria bastar para que muitos escritores largassem a caneta e se dedicassem ao estudo da vida dos caracóis. Mas a segunda parte... Ah, irmão! A segunda parte, Seymour..., é talvez um dos textos mais interessantes e perturbadores com que me deparei.
Ler Seymour... é se encontrar face à face com alguém que não só demonstra uma inteligência abismal, quanto, ao mesmo tempo, fala isso na nossa cara, brinca conosco, nos faz pensar, seduz, nos leva por onde quer e, no fim, nos deixa mais burros do que já éramos. Sem nos explicar nada, mas dizendo tudo. Salinger consegue isso simplesmente (como diz o título) apresentando-nos Seymour, um gênio, uma pessoa que nem fazemos ideia de como é quando terminamos de ler, mas que, esta é a maravilha, entendemos.
Se eu fosse um Salinger seria fácil, mas sou bem mais burro, e não sei dizer como ele consegue escrever 100 páginas sem explicar nada (as universidades estão cheias de alunos que fazem a mesma coisa, e as livrarias cheias de livros, mas não é isso o que Salinger faz) e ao mesmo tempo explicar tudo. O texto é tão inteligente que, para nos ajudar, Salinger usa, como narrador, um irmão supostamente bobo de Seymour (que não é bobo, não). Ele brinca com isso, brinca tão bem que, por momentos, achamos que está zombando de nós. Mas é exatamente assim que ele nos pega, e nos vira e revira o pensamento, tantas vezes que ficamos perdidos e entregues, presos, sem poder parar de ler nem para dormir.
Nem Salinger, Seymour ou o narrador são, em modo algum, arrogantes ou espessos; ao contrário, são transparentemente inteligentes e inclusive bons (de bondade). Esforçam-se para se comunicar, cientes de estar num outro nível (isso não é aparente no texto, está no fundo), e nós ficamos admirados e intrigados não pelo que contam, senão porque somos capazes de entrever que ali atrás há uma inteligência superior, limpa e cristalina, que não conseguimos, mas gostaríamos de entender.
Como eu diria... É como a sensação que as criancinhas têm quando vêem seus pais fazerem coisas "mágicas" que elas não têm como entender (cozinhar, dirigir, saber onde está tudo, conhecer as ruas da cidade,...). Acho que é isso o que eu senti: um misto de admiração e mágica, surpresa e fascinação, quase um delírio. Ah!, e o para mim mais engraçado. O narrador, em determinado momento, nos diz que Seymour conhece o Tao, que tem conceitos zen, que segue o caminho do oriente. Mesmo isso ele conta de uma maneira tão clara que parece o mais normal, o mais terrenal e menos espiritual do mundo.
Talvez esteja flipando demais. Mas no dia seguinte de terminar a leitura comprei Franny and Zooey, que também só tinha lido em inglês, e Nine Stories, porque precisava ler de novo o conto do peixe-banana, o suicídio do grande Seymour, chegar ao fim do que tinha começado. The Catcher In the Rye é uma obra-mestra, mas Seymour, An Introduction é a chave para entender por que Salinger, esse gênio, se retirou do mundo.