Recortei uma reportagem no jornal que me deixou arrepiado. Em agosto passado, uma garota de 23 anos, professora de espanhol, foi encontrada flutuando no rio, uma milha ao sul da ponta de Manhattan, na rota do ferry a Staten Island. Três semanas antes, tinha saído de casa para correr. Sem celular, RG, nada; somente os shorts e o top de corrida. Não voltou: esqueceu quem ela era. Um dia apareceu na loja da Apple, checando seu e-mail. Parece que tomou banho em alguns clubes esportivos. Mas ninguém sabe onde comeu, onde dormiu, quem a ajudou, como sobreviveu por tanto tempo. Queimada pelo sol, com os pés cheios de bolhas, foi resgatada à beira de morrer de desidratação e hipotermia. Supõe-se que sentiu tanta dor nos pés que, no fim, optou por nadar; e, pelas queimaduras na pele, dizem que passou vários dias numa ilhota da baía. Segundo os psiquiatras, trata-se de um caso de fuga dissociativa, uma forma rara de amnésia, doença que aparece de repente e, ao parecer, sem motivo específico. Por isso o fato seguinte me chamou a atenção: depois do recesso de verão, a jovem não tinha nenhuma vontade de seguir dando aulas; teve pesadelos ao respeito; e foi exatamente no dia anterior ao início dessas aulas quando tudo aconteceu. O psiquiatra entrevistado é prudente: “a explicação por trás da fuga é que a pessoa está fugindo de uma situação ruim”, diz; mas não reconhece esse fato como o catalisador.
-E sobre o quê você está escrevendo?
-Eu estou escrevendo sobre uma ferida.
-Ah! Todos nós temos feridas. E mais você vai ter. Qual tipo de ferida?
Pensei que aquela mulher fosse Anne. Por isso apressei o passo quando vi a mancha rosada. Por entre os arbustos e os galhos baixos, na mata nevada do Prospect Park, procurei a trilha mais rápida para chegar até ela. Tive de ziguezaguear, decidir em cada bifurcação, pois nas áreas de grama havia palmos de neve. Não foi difícil, era a única alma no lugar.
-Todo o mundo tem. Só que há quem disfarce, finja que é dor de barriga.
Não ia me deter. Quando vi que não era Anne, passei de largo, desapontado e com certa raiva. Mas me chocou que a velha estivesse sentada num banco totalmente esbranquiçado, sem ter se preocupado em limpá-lo.
-A senhora está bem?
Ela fez como se olhasse através do próprio colo.
-Ah, isso. - Puxou a aba do casaco: - É impermeável.
Não me pareceu que fosse, era um casaco vermelho simples. Mas assenti com a cabeça e segui em frente.
-Não esperava por ninguém tão bonito - ouvi.
Aquilo me fez sorrir. Voltei atrás. Pedi licença e varri com o antebraço a neve de um lado do banco (eu estava de jeans, morrendo de frio).
-Meu marido jogava críquete aqui. Morreu há 35 anos, o filho da mãe - ela disse, olhando para o campo à nossa frente. - Lhe importa se fumo?
-Sinto muito - eu disse.
-Não sinta.
A mulher quis saber se eu era casado, se tinha filhos, de onde eu era (percebeu meu sotaque), que diabos estava fazendo na cidade. ("Essa cidade de merda", disse.)
Não tinha o cabelo loiro (de longe havia me enganado), senão branco, e seu rosto era muito pálido também, os olhos como bolas de gude azuis. Não usava luvas.
-Ela é sozinha? - perguntou, logo que eu mencionei Anne. - Você faz ideia de quanto custava, uma carteira destas, 35 anos atrás? Desculpe.
-Casado ou solteiro, tanto faz - continuou. - Eu ainda penso nele. Às vezes falo com ele. Dá saudade de xingá-lo. Rezo por ele, até.
-A senhora não casou de novo? - perguntei.
-Tínhamos uma casa. - Deu uma tragada. - Já foi ali, no museu? - disse, indicando para o outro lado. - Bem no limite do Estado, perto do Canadá. Nada demais, mas bastava. Ah, se bastava. Mas ele quis conhecer o grand monde.
-A cidade?
Contou-me que no 4º andar do museu havia uma réplica do interior de uma mansão vitoriana:
-Toda luxuosa, não tem nada a ver. Mas alguns móveis e o sofá são iguais, diria que são aqueles. - Continuava a olhar para o campo, sem piscar. - Às vezes vou e sento no sofá. For old times' sake. Lá é difícil que não fale com o Leonard. Os visitantes nem reparam. Acham que sou parte da instalação. Só as crianças. Criança fica me escutando falar sozinha, de olhos muito abertos - disse, sorrindo. - Sinto falta. É claro que sinto falta.
Calou por uns instantes. Logo disse:
-Certo que deve ter suas feridas, essa sua Anne.
Por que teimo em encontrar você por acaso? Não mora no mesmo apartamento?, não dorme no andar acima do meu? Nem sei sequer por que a procuro. Gostaria de ler, você disse. Eu adoraria lhe contar. Mas é sobre mim - você não sabe -, não é sobre Alberto que estou escrevendo.
Para isso deveria ir ao Peru, solicitar uma entrevista, sentar no pátio ao lado dele, conversar (se ele estiver afim de conversar comigo), perguntar sobre os motivos de sua louca paixão. Os motivos da paixão. Você vê, Anne, quão absurdo? Mas é isso, só isso o que também me intriga. Alberto se apaixonou por Juanita: primeiro se apaixonou e depois endoideceu, ou foi ao contrário? Ele pediu, isso eu sei, e conseguiu, por meio de seu advogado de ofício, que argumentou que sua condição só pioraria, não ser trasladado a Lima, permanecer em Arequipa, perto da amada.
Não devem ser lugares tão estranhos, os sanatórios. Nos pátios destinados aos banhos de sol não devem encontrar-se pessoas muito fora do comum. Haverá os que gritem frases incompreensíveis e os mudos por decisão. Mas quantas pessoas não achei, estes dias e em 2000, dialogando consigo mesmas, sussurrando segredos às lixeiras, interrogando, xingando e chutando máquinas dispensadoras de jornais. Há jovens e adultos que seguem vivendo a escrutar o céu, temerosos de um novo 11-S.
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