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Ontem estava trabalhando no quarto do computador, sem conseguir me concentrar, e ouvi que na sala meu irmão Oriol estava vendo Friends (na verdade não estava vendo Friends, estava roncando no sofá). Aí resolvi ver uns minutos o seriado para me desestressar. Era um episódio muuuuuito antigo que eu não tinha visto. Não importa. O que aconteceu foi que apareceu o Joey Tribbiani e pensei, Putz, É O PERRY SMITH!!! Posso ter sido influenciado pela capa (feia?) do livro, que é um fotograma do filme Capote (Perry é o cara do meio, entre os policiais -quem não sabia agora já sabe: ele é preso :o), mas acho que não; acho que, tirando o sentido do humor, porque o Perry é ingênuo, e inculto -se bem que muito inteligente-, mas nunca faria uma piada, vi no Joey a personagem descrita nas páginas do livro. Perry é um dos dois assassinos e aquele a quem Capote dedica mais atenção, mais tempo, e é uma personagem que já não vai sumir da minha cabeça (e isso é raro que aconteça, raro até com os melhores romances). Dick é o colega dele, um cara muito diferente, e, esse sim, piadista. E depois tem o investigador principal. E o pai da família assassinada. E deu. Deu porque as outras personagens, umas 100, são todas secundárias, têm menos espaço e ficam pouco tempo na mente do leitor: são os vizinhos e amigos da família Clutter, os investigadores, os familiares dos criminosos, as pessoas que estes conhecem na sua longa fuga, advogados, presos. Com os cenários acontece uma coisa parecida. A cidadezinha do estado de Kansas onde o crime acontece e recriada vividamente, mas são fugazes (não esquemáticas) as descrições dos lugares visitados pelos fugitivos no seu longo périplo (que os leva até o México, até Nevada, até Florida...).
Tudo bem. Se existe um romance perfeito, é este. Com tudo o que isso tem de bom é de ruim. De ruim, tem que pode parecer frio demais. De bom tem tudo o resto. A escrita é a que eu mais gosto, realista, com atenção ao detalhe, com uma procura da objetividade máxima, sem intromissões do narrador. E só pra completar a informação: como falou um professor muuuuuuuito chato que eu tive no primeiro ano de faculdade (digo o nome? não digo), este é o romance que inaugura o novo jornalismo, que é aquele que explica as noticias como quem escreve um romance e que é a marca da revista The New Yorker. E outra, uma coisa que eu gosto muito: este romance, como The Great Gatsby, foi escrito com a colaboração dum editor, o editor dessa revista. Agora os editores se dedicam ao marketing e nem lêem os originais que publicam; há um tempo, animavam, empurravam os escritores a escrever bons livros; e há ainda mais tempo, quase que dá pra dizer que escreviam junto com seus autores, conversando, trocando montes de cartas com eles. Saudade desse tipo de editor...
Este é o romance ideal para quem não entende o crime. Como alguém pode cometer um crime. Neste caso, um quádruplo assassinato com premeditação. Neste ano, um menino foi arrastado por um carro pelas ruas do Rio de Janeiro durante sete quilômetros. Ficou destruído. Dele só restaram os ossos e a pele em tiras. Foi uma tragédia que os cariocas demoraram em superar -ficaram dias sem nem poder tocar no assunto. Eu cheguei ao Rio sete dias depois disso ter acontecido. E mais tarde, já em Porto Alegre, fiquei indignado com uma coisa. E é que três ou quatro semanas depois desse crime brutal, os mais sérios jornalistas do país ainda se referiam aos criminosos com palavras como "monstros" ou "inumanos". É obvio que não eram isso. E também, que acreditar nisso só leva a não entender nada e a não poder prevenir crimes futuros. A sangue frio ajuda a entender como uma pessoa chega a cometer um crime. E até a sentir simpatia por essa pessoa. E olha que o autor não pretendia isso, senão descrever o que aconteceu da maneira mais objetiva possível. É um livro bom, também, para entender a brutalidade da pena de morte (ups, estou revelando tudo!; mas quem não leu já viu o filme, né?). Mas isso a maioria das pessoas já sabem. Só esses loucos do meio-oeste dos Estados Unidos não entendem. Ontem os texanos comemoraram o assassinato do preso número 400, bem faceiros.
A tradução espanhola é perfeita. Parece um livro escrito diretamente em espanhol. E um detalhe. Tem meia dúzia de frases cafonas. Quem ia dizer isso de Capote! Mas num livro de 400 páginas isso é uma anedota. E outra: depois do juízo, o autor parece começar a se interessar menos pela história. Mas isso também não é tão importante. Livro indispensável para entender como uma pessoa pode se destruir desde a infância. E indispensável para os estudantes de jornalismo. E não sei como a Maria coloca os corações no final das suas resenhas, mas a este livro, eu dou todos.
Lido em espanhol.
5 comments:
Bueno, vengo a defenderme... No es que las portadas de Anagrama no me gustan, pero algunas veces, la foto y el color creme no quedan bien... Creo que los cinco primeros libros que conocí desta editora eran ese amarillo clarito y con fotos muy "cafonas". Un libro, incluso, era de Kazuo Ishiguro, y el conjunto amarillo más la foto terrible parecían distanciar el lector de la obra del gran romancista japonés. Al menos me parece…
En "A sangre fría", la foto en blanco y negro, tono gris, con la portada creme no quedó mal... Y sí bien, con aire de 30 años, más o menos. :o)
Antes de pensaren que a mí no me gusta la aparéncia mantenida por años en libros, embalajes, tipografías etc., no es verdad. Tienen que mirar la parte de tras de los libros que van a entender lo que quiero decir... :o)
Y “senso estético” tiene el tipo que escribe los posts.
No leí este libro... Podrías emprestarme??
Merci!
Acho que você tocou num ponto importante, Roger: como pessoas "comuns" se tornam criminosos e cometem atos hediondos. Há uma necessidade de demonizá-los, de dizer que essas pessoas são sim diferentes de nós, os normais. Mas o que é realmente amedrontador no livro fantástico de Capote é que ele mostra que näo, os criminosos são gente como a gente, e que de repente passaram um limite, uma linha invisível, que está ali, ao lado de todos nós. Esse é um dos melhores livros que já li na vida. E, ano passado, quando finalmente assisti a "Capote", o filme com o ótimo Philip Seymour Hoffman como Truman, pude entender como escrever esse livro arrasou com a vida do escritor. Uma obra prima, de fato, mas um livro que consumiu a vida de Capote.
Maritrini! Hola boluda! :P Todos los de narrativa internacional son en ese color crema, y los de narrativa en español, iguales pero en gris. Tienes uno de Bolaño, no? Seguro que todavía te gusta menos! Las contraportadas no te gustan pero son muy útiles para saber si el libro es bueno, con un buen resumen y fragmentos de las críticas de los mejores periódicos y revistas. Perfecto para los que no nos queremos arriesgar! (Mirá: ese libro Rex que compré no me gustó nada. Era una novedad y no había ninguna crítica en la contraportada. La cagué!)
Anonymous, te podré prestar el libro cuando lo termine de leer mi padre. O Uri, que también se lo ha comprado. Creo que Jorge Herralde, el editor, podría mandarnos una cesta por Navidad... :)
Oi Maria! Obrigado pelo comentário!
Eu acho que sim, que ver a humanidade dessas pessoas é importante. Só acho que, neste caso, mais do que uma linha ou um limite, que certamente existe e a gente pode trespassar, há um processo, um processo longo que vai separando essas duas pessoas dos outros, da sociedade, de sentimentos como a empatia, a compaixão, etc. Não sei: um processo longo, em definitiva.
Eu estou preocupado ao ver como as pessoas se esquecem da educação, prevenção, reeducação, etc. (gosto muito dos artigos de Gilberto Dimenstein na Folha porque lutam contra esse esquecimento), e pedem a pena de morte, ou a redução da maioridade de idade penal, ou, agora na França, a castração química (!) dos estupradores...
Eu adorei esse filme. Tem outro, que ainda não vi mas estou querendo ver, que trata exatamente o mesmo assunto (como o livro foi escrito) e que dizem que e tão bom quanto aquele. Só que esqueci o título! :))
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