Tuesday, January 19, 2010

A viagem definitiva* (Sputnik Sweetheart)

De novo no meu café preferido de Porto Alegre, reviso o que escrevi ontem no vôo São Paulo-POA.

Comecei este blog, em 2005, com uma "crônica" sobre minha primeira viagem de avião ao Brasil (na verdade, a segunda: a primeira foi em 2003; foi na segunda, porém, que eu vim para ficar). Não lembro se escrevi mais sobre essas viagens. Foram muitos BCN-POA, POA-BCN, BCN-RIO, BCN-SSA. Cada vez mais pesados e cansativos, psicologicamente mais longos. Mas esta última viagem merece de novo um post, já que foi ótima, tudo saiu "a pedir de boca", como se diz em espanhol. E isso apesar dela não ter começado bem. Em Madrid eu deveria ter ficado umas oito horas, o bastante para sair do aeroporto e passear, aproveitar o domingo. O problema é que o vôo de Barcelona atrasou, e assim foram para o ralo os meus planos de 1) ir ao Museu do Prado ver "Las Meninas", 2) ler tranqüilamente o jornal de domingo num café, 3) almoçar umas tapas no bairro de La Latina. Em vez disso, fiquei por quatro horas na pior, mais antiga terminal de Barajas (a T1), lendo os jornais e entrando, vez por outra, numa dessas desagradáveis celas de vidro para fumantes**.



Bom mesmo foi o vôo transatlântico com a TAM (para essa viagem, nada melhor do que a TAP ou a TAM; a evitar, Air France, B. A., Iberia e outras). Na poltrona, lado corredor, terminei o jornal e comecei o romance Sputnik Sweetheart (1999), de Haruki Murakami. Há anos que meu irmão Uri queria que eu lesse Murakami, e eu ia adiando a ocasião, com algum receio, não sei bem qual, ainda mais porque eu tinha adorado o único texto dele que eu li, "The Running Novelist", uma peça autobiográfica que saiu na revista The New Yorker. (Não está mais disponível no site, mas recomendo, é muito bom. E muito interessante para quem quer escrever mas sente falta da coragem necessária, a força, a temeridade de deixar de lado outros projetos, ou empregos, e se jogar na piscina; útil, também, para quem já escreve e encontra problemas práticos, do tipo falta de concentração, de ânimo ou confiança, etc.)

Embora Uri me recomendasse, dentre todos os livros de Murakami, especialmente Kafka On the Shore (apesar de ter achado todos eles bons), eu tinha comprado Sputnik Sweetheart, simplesmente porque aquele era longo demais: estou escrevendo em português e não queria mergulhar por tantas páginas no inglês (Murakami escreve em português: por preconceito, achei que a versão inglesa seria melhor do que a espanhola ou catalã). O romance, leve, triste, lindo, empolgou-me desde o início, e não vou esquecer tão rápido suas personagens, com as que me identifiquei. São três: a protagonista, uma garota japonesa de 22 anos chamada Sunire, solitária, excêntrica, leitora de Kerouac, escritora, ou futura escritora (grande personagem: por como age, como veste, como escreve, como se relaciona com o mundo***); o narrador e melhor amigo dela, cúmplice, soulmate dela, professor de escola em Tokyo, onde eles moram e a maior parte da história se passa; e Miu, mulher rica, misteriosa, importadora de vinhos da França, dezessete anos mais velha do que Sunire e de quem Sunire se apaixona. É para Miu que Sunire inventa o apelido Sputnik Sweetheart, quando, no primeiro encontro, a mulher, falando em Kerouac, chama ele de "um desses sputniks", em vez de beatnik. Não é uma anedota: as três personagens, essas três pessoas, têm amor para dar e receber e, no entanto, vivem isoladas, orbitando em solitário, como Laika no satélite desse nome. (Na colisão de dois desses "satélites" está o clímax do romance, que não vou contar.)

Parei de ler quando serviram a ceia, um frango delicioso com legumes. Depois, tomei dois rivotrils e dormi. Só acordei quando anunciaram o café da manhã, uma omelete que comi enquanto seguia com a leitura. Sunire havia desaparecido sem deixar rastro numa ilha do mar Egeu, e Miu chamava a Tokyo à procura da ajuda do narrador para encontrá-la. (É de destacar que cada personagem sofre uma metamorfose num ou outro momento; experimenta uma mudança em seu ser que Murakami descreve com uma mistura, para mim inédita, de fantasia e realismo.) Nem me dei conta e já estávamos em São Paulo, sem eu ter olhado para esse globo terrestre da telinha, com aquele aviãozinho que parece nunca se mexer. Nada disso, desta vez: nem mapa irritante, nem filmes ruins (não sei quais dava para ver, pois não liguei a tela): só uma boa leitura e uma boa dormida.

Não fui o primeiro em descer do avião, mas fui o primeiro em passar o controle de passaportes, o primeiro em chegar à esteira de bagagens; e minha mala, maravilha, a terceira em aparecer. Despachei-a rápido, comprei um guaraná (R$ 4,75, aeroporto é assim) e saí para fumar, com um parque que eu nunca tinha visto à minha frente, sentindo um cheiro de floresta (talvez não dê para ver o parque do 1º andar, o das saídas). E já antes de sair do saguão, tive a sensação (minha mãe não vai gostar) de estar em casa de novo. (OK, vamos dizer que eu tenho duas casas.) (Ou que uma parte de mim se encontra mais a vontade aqui, no Brasil.)

O vôo para Porto Alegre saiu sem atraso. Apenas tive tempo de comprar a revista Piauí de janeiro e de ler as manchetes nas capas dos jornais, que têm a virtude de trazer a gente de volta à @#(*! realidade. Piñera ganhou as eleições no Chile. Notícia péssima. Em 2003, estando em Santiago, li no jornal O Mercurio uma entrevista com esse cara. Ricaço, era a única esperança dos pinochetistas de voltar algum dia ao poder, e falava com fervor da Escola de Chicago, a dos economistas que nos levaram à crise atual. E Haiti. Não sei o que escrever sobre o Haiti. Acho que tantas mortes não são devidas ao terremoto. Como tantas mortes não foram devidas só ao tsunami; como não foram devidas só ao Katrina, que arrasou os bairros pobres de New Orleans. @#$% de mundo.

No vôo, li o maravilhoso último capítulo do romance, aparentemente sem relação com a história e, no entanto, seu encerramento perfeito: o diálogo do narrador com um de seus alunos, que vem de roubar uma besteira num supermercado, em que a criança não fala uma palavra sequer. Terminei o livro me sentindo definitivamente perto desses dois, o narrador e Sunire, e entendendo a amizade essencial entre eles. Tenho a sorte de ter uma amizade assim. Também sei o que é a solidão (curti-la, sofrê-la). Sei que as pessoas tristes são também, em determinados momentos, aquelas capazes de sentir uma felicidade maior. Uma gaúcha dessas tão belas, loira, alta e forte, dormia ao meu lado, com um livro subtitulado "Transforming Professional and Personal Life" no colo.


*Definitiva porque na próxima viagem a Barcelona, se tudo der certo, serei mestre em Teoria da Literatura e, mais importante, levarei embaixo do braço a primeira versão de um romance.

**Parei de fumar (de novo). Agora para valer (como sempre).

***Citação: "Sumire was a hopeless romantic, a bit set in her ways - innocent of the ways of the world, to put a nice spin on it. Start her talking and she'd go on nonstop, but if she was with someone she didn't get along with - most people in the world, in other words - she barely opened her mouth. She smoked too much, and you could count on her to lose her ticket every time she took the train. She'd get so engrossed in her thoughts at times she'd forget to eat, and she was as thin as one of those war orphans in an old Italian film - like a stick with eyes. I'd love to show you a photo of her but I don't have any. She hated having her photograph taken - no desire to leave behind for posterity a Portrait of the Artist as a Young (Wo)Man".


PS: Ótimo primeiro dia em Porto Alegre, também. Estive com a Anna brindando pelo seu cum laude no mestrado e seu ingresso no doutorado. E com o Pedro brindando pela sua mudança para o Rio. E com o João e o Leandro, amigos do Pedro e da Gabriela.

7 comments:

Anonymous said...

"as três personagens, essas três pessoas, têm amor para dar e receber e, no entanto, vivem isoladas, orbitando em solitário..."

(conheço algumas pessoas assim. E é horrível vê-las não fazendo nada para mudar isso, só sofrendo a solidão, vivendo-a intensamente e reclamando de estarem assim. O ser humano sabe ser mesmo uma MERDA!)

Feliz retorno, cara!!

Um abraço (primeiro de 2010) do Anônimo Educado.

優次 (Yuji) said...

Em vaig comprar "Tòquio Blues" (Norwegian Woods) en català fa uns mesos, però me l'estic guardant fins que pugui aconseguir la versió japonesa. Com a molt l'he fullejat i llegit alguna pàgina a l'atzar. Recordo haver llegit que les traduccions (les catalans, almenys) dels llibres de Murakami estaven a càrrec d'un traductor que va treballar molt de temps per editorials espanyoles de manga. Almenys no està traduïda de l'anglès ;)

M'agradaria poder dir el revés, però si l'any passat he llegit poc, enguany em fa que tindré menys temps encara per llegir... :/

Roger said...

Hola Yuji! Segur que t'agradarà. Norwegian Wood, Kafka a la platja,... són els Murakamis "clàssics" i millors. Quina enveja, com m'agradaria llegir en japonès! (I en xinès, i en àrab... però llavors potser em tornaria boig >;) I segur que la traducció catalana està bé (prejudicis meus). Ja sé que la teva carrera és difícil, però a veure si trobes moments per desconnectar; Ara respondré el teu altre comentari, una abraçada!


Obrigado, A. E.! Saudade de você! Tem pessoas assim. Mas, sabe, essas do romance não reclamam: a seu modo, se não dá para dizer que sejam felizes, vivem intensamente; e, pouco a pouco, vão se sentindo realizadas...

Um abraço e feliz 2010!

優次 (Yuji) said...

No sé si encara puc llegir coses així... Tant de temps en stand-by...
Igual, ahir cercava una edició de Norwegian Woods en japonès en volumen únic (perquè els ports surten més barat). No n'he trobat cap, però he topat amb això: http://www.norway-mori.com/
Posa "estrena el desembre del 2010 en tot el país". Aviam si me'l llegeixo abans d'això...

Sergio Lulkin said...

Benvingut! Quin plaer seguir el teu viatge dins del llibre, i fora d´ell.
Abraçada,
Sergi

uri said...

I told ya' bro', El murakami és gran!!! Llàstima que la gent trigui tant a fer-me cas (remember que Uri és vanguardia!!! jajaja).

no sé no sé... i si em dedico a la crítica i no a la creació? el dubte m'envaeix...

uri

Roger said...

http://www.norway-mori.com/? Ups, no entenc res, haha! Murakami al cinema, així? Li agradarà saber-ho al meu germà Uri...

Hola Sergi, gràcies! Farem algun capuccino aviat, no?

Maritrini, viste? Toda mi vida voy a tener que aguantar "Uri es vanguardia"!... >8/