Thursday, April 29, 2010

Notícias da Copa do Mundo 2

Que se cuide a seleção espanhola, porque a defesa da Internazionale, que ontem eliminou o Bar$a,... é a defesa da seleção brasileira.





PS: Grazie mille, Inter. :) De um torcedor do RCD Espanyol de Barcelona.

Wednesday, April 28, 2010

O sistema vampiro, segundo Ware



Chris Ware, autor de Jimmy Corrigan: The Smartest Kid on Earth e um dos melhores artistas gráficos norte-americanos, satiriza o capitalismo nesta capa da revista Fortune, que foi censurada e substituída por outra, mas está em todas partes na Internet.

Clicar na imagem para ver os detalhes: nos terraços das 500 maiores empresas, os donos e membros dos conselhos dançam e brindam com vinho, guindastes e helicópteros levam para eles carregamentos de dinheiro; no centro, uma chaleira representa o Partido Republicano, ao redor dela dançam seus idiotizados eleitores; o setor financeiro é um casino; Florida, um paraíso da especulação imobiliária; na zona dos grandes lagos, a indústria automobilística está falida; no México, trabalhadores mexicanos são explorados; um outro helicóptero leva o dinheiro dos contribuintes para os três prédios, para resgatar aos especuladores de Wall Street; a Grécia está vazia; as grandes redes de comércio americanas compram barato na China. E deve ter muitos outros detalhes que ainda não vi, como em qualquer desenho de Chris Ware.

Em que estavam pensando, os editores dessa fátua revista, ao encomendarem a capa ao grande Ware? :)


(Obrigado ao Uri por me enviar a notícia.)

Thursday, April 22, 2010

Notícias da Copa do Mundo 1

(Início de uma série que irá até... deixa eu ver no álbum... o dia 11 de julho.)

Notícia 1: "Assaltantes roubam lote de 135.000 pacotes de figurinhas da Copa em São Paulo" (Uol). Ou, 675.000 cromos. Ou, mais de R$ 100.000. Não acho que seja para vender. Acho que até os assaltantes ficaram viciados com o álbum oficial da Copa do Mundo...

Notícia 2 (anterior à 1): "O desabastecimento de figurinhas na cidade se São Paulo vem gerando irritação de consumidores e donos de bancas de jornal". A notícia explica que, apesar de ser uma mania há décadas, o sucesso do álbum de figurinhas da Copa deste ano está surpreendendo todo mundo. E todo mundo está irritado com a Panini, que se justifica: "Não esperávamos esta mania, o álbum é um mega sucesso. Os envelopes mal chegam às bancas e já se esgotam. Há colecionadores comprando 50 envelopes de uma única vez" ("colecionadores" = nerds). E um dono de banca diz: "Só hoje eu disse mais de 20 vezes que não tinha mais. Veio um cara aqui e comprou R$ 400! Não entendo uma coisa dessas. Ele era um adulto!". É. Esse é o ponto ao que eu queria chegar. Ele era um adulto. Nós somos adultos.

Porque eu (sim) comprei o álbum na segunda-feira da semana passada, depois de ter postado mais um capítulo de meu romance. Contente, me dei esse presente (e disfarcei comprando também a Folha de S. Paulo e a Piauí), e desde então estou achando um prazer abrir os envelopes (já não há como disfarçar, a cada dois ou três dias compro 10 envelopes na mesma banca, que, estou achando, me dá sorte, tenho poucos cromos repetidos), ver se sai alguma figurinha especial (um time, um estádio, o emblema de alguma seleção, um jogador que eu conheça), passar delicadamente as páginas finas do álbum, colar com atenção, no quadradinho, cada figurinha, alisando-a... Um prazer para lá de relaxante (mais do que o ioga, que também comecei a fazer).

Agora entendo o meu pai. No fim do verão do ano passado, depois de, se não lembro mal, três anos de aposentado, peguei ele sentado à mesa da sala de jantar colando figurinhas num álbum. O álbum, do campeonato espanhol, tinha vindo com o jornal de domingo, e eu não acreditei no que via. Falei: "Fala sério, pai, tu não vai fazer isso...". Ele me olhou, com cara de abobado: "Por que não? Tô gostando...". Eu falei para meu irmão: "Ei, tu, diz para ele não fazer isso!". Meu pai estava aposentado, sim, com muito tempo livre. Mas aquela regressão à infância???

Bom, pai: eu regredi também. E ia escrever este post mesmo antes de saber que tantos marmanjos ("homem adulto, ou abrutalhado") do Brasil estão dedicando seus dias ao mesmo passatempo infantil. Isso não é desculpa.

No início fiquei preocupado. (Ia dizer o quê, à mulher a quem compro sempre a Folha ou o Estadão, quando fosse lá pela segunda vez pedir envelopes? Que eram para o meu filho?; ia pensar o quê, dona Madalena, quando viesse arrumar o apê e visse o "South Africa 2010 FIFA World Cup Official Licensed Sticker Album" ao lado do Dicionário de Sinônimos e Antônimos?; ia reagir como, a amiga e escritora Ana Santos, quando eu lhe revelasse o meu segredo? - ela já reagiu, me disse que podia trocar figurinhas com as crianças às que dá aulas de inglês...; e a Raquel?, a Raquel ainda não sabe...) Nunca reneguei de meu lado infantil, mas, colecionar cromos, nessas alturas? Precisava, de mim para mim mesmo, de uma boa explicação.

A explicação não veio (não tem explicação). Nessa segunda-feira de há duas semanas tive, simplesmente, um impulso (quero esse álbum) e uma intuição: fazer a coleção pode ser relaxante! E a intuição estava certa, está sendo relaxante e gostoso, já disse, meu novo passatempo. Depois pensei em meu pai, entendi ele, com seu álbum do patético campeonato espanhol. E me senti melhor, gostei de estar fazendo como ele. E vieram lembranças de décadas atrás. Especialmente, de um álbum de cromos, que ainda conservo, bem guardadinho, como se fosse um livro, titulado Mamíferos. (Como qualquer criança, eu gostava de golfinhos, mas foi a partir desse álbum, com desenhos hiper-realistas de todas as espécies, que passei a gostar para sempre de cetáceos.) Não conservo nenhum outro álbum. Só lembro de ter completado outro (mas esse não era meu, era de toda a família) sobre "Árvores de Barcelona".

Lembrei, também, das palavras que usávamos para trocar figurinhas (que no Brasil devem ser diferentes; como é que eu vou fazer?), mas não de com quem as trocava, nem de quais eram as coleções (tenho lembranças mais vivas das bolas de gude, as "canicas", que ganhávamos ou perdíamos para os amigos em cada jogo). Um cromo repetido era "repe", ou "tengui". Um cromo que faltava era "falti". Daí o cara ia mostrando suas figurinhas e a gente entoando: "tengui, tengui, falti, tengui, falti". Isso a gente fazia na escola, mas meus pais me levavam também ao Mercat de Sant Antoni, onde aos domingos pais e filhos se reuniam para trocar figurinhas, revistas, tudo. No mercado, eu preferia as bancas: nelas havia todos os cromos, bastava comprá-los.

Em fim. Feita pública a confissão, não sei o que mais dizer. É bom voltar à infância. Mas há uma coisa que me inquieta. O tema dos álbuns. Eu era tão nerd assim, fazendo a coleção de mamíferos aos seis ou sete anos? E hoje virei o quê, com essa besta coleção de rostos de futebolistas?

Saturday, April 17, 2010

Traduccions de Brasil 62 (O nada, de Cidadão Instigado)



La nada

Abrid las puertas de vuestras casas
Dejad que entren los ladrones
Intentarán llevarse todo lo que puedan.

Y te sentirás cansado
Y también muy triste
Y te irás a caminar por ahí
Pensando en tus propios pasos
Fluctuantes
Con aquel deseo de desaparecer
Progresivamente.
E irás... irás
E irás... irás
Desapareciendo poco a poco
Y después volviendo a la realidad
Y a la nada.

Y así, cuando sepas seguro que ya no posees nada
Y ya no te pertenezca ni tu propio dolor
Quizá
En algún momento
Te libres de esos pensamientos
Y te sientas
Empezando
Renaciendo
Solitario
Vislumbrando
Un nuevo momento.
Por eso

Abrid las puertas de vuestras casas
Dejad que entren los ladrones
Intentarán llevarse todo lo que puedan.

Tuesday, April 13, 2010

Capítulo 30 (novo rascunho)

Na quinta-feira, andei a passo normal até o metrô, resolvido a descer normalmente as escadas, pegar o trem rumo a Manhattan e refazer velhos caminhos de 2000. E Anne estava lá, seu corpo perfilado diante de uma viga vertical, com seu casacão aveludado e uma boina em vez do gorro de lã, sua cabeleira cheia. O trecho central da compridíssima plataforma (de uma entrada não se enxerga a outra) está sempre vazio; os passageiros se concentram do lado de um dos dois acessos. Na entrada de Bedford não havia mais de quinze ou vinte pessoas. Quando a vi, fiquei parado, nervoso, sem atinar no que poderia lhe dizer - três dias desejando encontrá-la e na hora não saber. Reagi quando ouvi muito ao longe o rumor que antecede à chegada do trem. Então me aproximei dela, dei-lhe um oi de uma certa distância, um oi alongado, como se eu fosse um estranho e ela pudesse se sobressaltar. Anne me cumprimentou de volta, surpresa de verdade.
-Senhora psicóloga - eu disse, num tom entre reverente e provocador (do catálogo dos tímidos).
Ela me olhou processando as palavras, como se eu tivesse errado a profissão.
-Senhor escritor - retrucou. Respondi puxando os cantos da boca por uma fracção de segundo.
-Estava pensando em você - eu disse, sem querer ser levado a sério. - A caminho do trabalho?
-Ãhn ãhn. - Anne adotou uma postura mais erguida, que nela parecia natural: - E você?
-Vou dar uma caminhada. Depois volto para o café.
-Com este frio?
-Com este frio. Não parece que o tempo vá mudar. - Eu ia dar mesmo uma caminhada, só não podia lhe dizer à procura de quê.
-Está bem, vai lhe fazer bem.
Fiz cara de não entender.
-Caminhar. Faz bem para todo mundo - Anne disse.
Assenti com a cabeça, de lábios fechados. Talvez estivesse pensando em seus pacientes.
Quis perguntar-lhe sobre eles. Saber que tipo de psicóloga ela era. Saber se seus pacientes eram as únicas pessoas que ela via. Imaginei-a no consultório e de noite em casa, revisando as anotações do dia. Sozinha.
-Sabe? - eu disse sorrindo. - Sempre quis ter uma psicóloga.
Anne me fitou estreitando os olhos. Sorriu também:
-Psicóloga mulher? - Não me deixou responder. - Qual é o problema do senhor?
Solidão, o mal do século (mas, que século?), ansiedade, depressão.
-Writer's block - eu disse.
-Ah, isso. - Dor de cabeça teria causado um efeito maior.
Ela olhou em volta, inclinou-se para mim, sussurrou:
-Eu não trato amigos.
Senti seu sopro na orelha, me arrepiei.
-Também não trato vizinhos - logo emendou.
O trem estava entrando com grande estrondo na estação.
-Isso é norma, está nos livros?
-É facultativo - ela disse, levantando a voz.

Entramos juntos no vagão, sentamos juntos. Anne não tirou o casaco, nem as luvas, só a boina. Pude ver de perto seus cabelos, senti um cheiro adocicado bom. Diferente do verão, quando o calor na plataforma é sufocante e as pessoas esperam ansiosas pelos trens, agora o frio não dá trégua, é tão intenso aqui abaixo como na superfície, ou então demora muito para sair dos corpos. Com todos os passageiros agasalhados, os vagões parecem mais lotados do que realmente estão, e as pessoas, volumosas, ficam coladas as umas às outras, criando cadeias ininterruptas de impermeáveis, felpudos, couros forrados, lãs. Através de camadas e camadas de tecido, sinto o braço e o ombro de Anne, que tem os antebraços em cima do bolso, uma mão ancorada na outra. Eu sento direito, tentando não apertar o jovem corpulento do outro lado, que usa fones de ouvido por cima de um boné com viseira de time de futebol. Minha vizinha não fala. Olha para o alto, eu olho também: os anúncios de um filme de terror adolescente e do aquário de Coney Island, com a foto de um tubarão mostrando as mandíbulas. Ouço o ruído pneumático, intermitente do deslizar sobre os trilhos. O silêncio no vagão só não é constrangedor porque é compartilhado por pessoas igualmente sonolentas ou entediadas.
-Problemas com sua múmia, então? - Anne diz, baixinho.
-Sim. Com seu namorado, mais bem. Ele é quem sabe da história. Eu só posso conjeturar.
-Não é esse o trabalho do escritor?
Anne gosta de alfinetar, eu gosto de aproveitar para contemplá-la. Usa brincos de aro grande prateados, batom suave nos lábios. As maçãs do rosto, proeminentes, dão mais vigor ainda ao seu olhar.
-Talvez. Mas quem diz que eu seja.
Anne reprime o riso. Logo diz:
-Procure ele.
-Está preso em Arequipa.
-Ele está preso? - Deixa os lábios entreabertos, os dentes brancos à mostra.
-Num sanatório.
Resumo para ela o que Alberto R. fez no museu. Falamos tão baixo que parecemos estar conspirando. Não faz mal.
-Escreva-lhe - ela diz.
-Escrever o quê?

De pé, uma mulher lê a New Yorker dobrada, tira a luva para virar a página. Um homem lê um romance de Joseph O'Neill que eu vi em algumas livrarias, que ganhou um prêmio importante. Uma outra mulher, também de pé perto das portas, prende a atenção de Anne, que acompanha o diálogo mudo entre ela e a filha. A menina, de uns cinco anos, está sentada à nossa frente, inquieta, o rosto tristonho. Dá mostras de querer se levantar, juntar-se à mãe ou ceder-lhe o assento. A mulher parece muito cansada, está com olheiras. Faz uma careta como que agradecendo e um gesto para que a filha não saia do lugar.
-Deve ser difícil, reviver uma morta - Anne diz, de modo insuspeitado. Às vezes, aprendi com J.-P., há mais informação no tom do que nas próprias palavras ditas. E ela diz isso com uma melancolia que espanta.
-Você não acha? - ela diz girando de repente para mim. Seus cabelos esvoaçam e uns fiozinhos acariciam meu nariz.
-E fazer com que alguém se apaixone por ela...

O trajeto no segundo trem é curto, a travessia subterrânea do rio. Ambos descemos na estação de Union Square. Penso em inventar uma destinação ao norte, mudar o passeio. Mas desisto. Anne, ao fim e ao cabo, vai trabalhar. Eu talvez também. Despedimos-nos num cruzamento de galerias (ela me estende a mão), os únicos parados em meio ao turbilhão. Ela segue em direção Uptown. Quando já está de costas, lembro:
-A música que você escuta, o que é?
Ela não se volta.
-Anne!
Ela vira o rosto apenas o necessário, o instante justo para dizer:
-É brasileira!

Saio do lado da praça. Ao meu redor, as pessoas continuam a andar depressa. Logo as ruas desta parte da cidade ficarão desertas. Os empregados não deixarão seus postos até o fim do expediente (não sairão nem para almoçar); os estudantes da NYU se encerrarão em suas respectivas faculdades. Atravesso até a loja da Virgin para tomar o café da manhã. Faltam cozy cups em Manhattan. Deve havê-los, escondidos em ruazinhas do East ou o Greenwich Village; de resto, só há Starbucks, lojas de redes de lanchonetes, cafés de livrarias ou de museus. São mais das 9 h e o local está vazio. Um segurança está dentro, resguardado, próximo à porta; uma moça espera atrás do balcão, fazendo nada. Ela tenta ser amável, recomenda-me un sanduíche. Está com sono, não consegue segurar uns bocejos. Dou uma olhada nas revistas. Pego um livro no primeiro expositor da loja, no limite entre esta e o café: um livro de graffiti e outras formas de arte urbana, que folhe-o enquanto como. Quase todas as intervenções são políticas, ataques diretos ou irônicos às guerras de Bush e Blair. Talvez seja o máximo que se possa fazer. Esses líderes não ficarão envergonhados por serem comparados com Hitler ou retratados com sangue jorrando das mãos; mas melhor essa revolta pública do que xingá-los quando aparecem satisfeitos na TV - como fazia minha avó, jogando o corpo para a frente, com risco de cair de sua cadeira de braços ou ter um ataque de hipertensão. Música brasileira. O que é que eu sei? Poderia procurar aqui na loja. Ou melhor, perguntar a Anne. Seria a maneira. Outra seria contar-lhe a história de Alberto R., a quem poderia tentar escrever uma carta (por que não) nessas horas infrutuosas no café.

Monday, April 12, 2010

Mark Gungor's Tale of Two Brains

Funny and... quite true!




And this is from last week, the South Park episode about Facebook: "You Have O Friends".

Friday, April 09, 2010

Capítulo 29 (rascunho)

A solidão nos deixa tristes e a tristeza nos torna frágeis. Por isso não me decido a bater à porta de Anne, ou a aparecer no patamar da escada, de manhã, na hora em que ela sai. Mas há semanas penso nela, quero encontrá-la, ouvir sua voz, sentir de novo seu olhar, gozador ou ensimesmado. Não sou de ficar espionando, nem de tecer estratégias, mas por três dias tentei provocar o encontro. Enquanto me arrumo, ouço movimentos no andar de cima, arrastar de cadeiras, passos. Acredito distinguir o som amortecido de uns pés de meias, ou chinelos, na madeira, do som seco e vigoroso do salto alto. Morar sozinho aguça o ouvido. Então eu saio, entre as 8 e as 8:15 h. Em vez de dobrar à direita na rua Clifton e ir direto para o café, continuo pela avenida Bedford, tão devagar quanto eu posso, como se fosse pegar o metrô. Faço esse pequeno contorno sem olhar para trás, desejando ser avistado por ela, e que ela não mude seu caminhar apressado (não teria por quê), me alcance. Só no final, quando atravesso para a outra calçada, olho de viés. Sem rasto dela, sigo em frente, passando pela boca de metrô, desiludido, dirigindo-me ao Cozy Cup no sentido contrário do habitual, acenando com a cabeça para um ou outro rosto mais ou menos familiar.

Fico no café por horas, até depois do almoço, no banco da mesinha do corredor. Aguardando lembranças de nove anos atrás, pensando em Alberto R. Rabiscando ou desenhando no caderno, deixando-o aberto por alguma página escrita pela metade antes de a garçonete vir me atender ou alguém passar para ir ao banheiro. Desenho a caneca de cerâmica vitrificada ou o que enxergo desde minha posição, uma ponta do balcão, com a caixa e alguns bolos expostos, a carcaça grená da máquina de café, os quadros negros pendurados no teto, com nomes de saladas, sopas, doces escritos em giz, numa elaborada imitação de caligrafia infantil. A gravura na parede prende minha atenção, demoro-me observando-a. É uma mulher que pula de um prédio alto, no que parece a representação de um suicídio, mas não é - não acho que seja. (No sábado passado, um menino ficou olhando o quadro, enquanto o pai escolhia um jogo na prateleira ao meu lado; assinalando com o dedo a mulher, o menino perguntou o que era; um anjo, disse o pai.) O prédio é semelhante àquele que eu vi na Quinta avenida, um castelo medieval. Um de seus andares preenche o lado direito do quadro, em primeiro plano, como se pintor e observador vissem a cena de uma janela desse mesmo andar. O céu ocupa as outras duas terceiras partes: em cima, uma nuvem preta ameaçante; no meio, ar cor de água-marinha acinzentado; na base, o contorno distante da ilha de Manhattan e as águas da baía, de um preto esverdeado tomado do céu. (A perspectiva é impossível. Onde se ergue o castelo?, acima do Brooklyn, do Queens?) Dois raios de sol furam a nuvem, deixando um trecho de mar reluzente, em volta da ponta da ilha, e iluminando o castelo (os arcos, os parapeitos, as pedras do muro) e a mulher. Ela pula de costas, com as pernas e os pés esticados, o corpo flexionado na cintura, num ângulo reto; a cabeça e os olhos fechados no centro exato da composição. É uma mulher executando um salto ornamental, vestindo um colorido maiô de natação. Ela não cai, nem está em movimento (só a memória de um salto traz esse pensamento): está parada no céu. Seus cabelos são da cor do castelo, branco e cinza alternado, como os de uma estátua; em contraste com as coxas, as pernas e os pés, de pele fina e tersa, que são de uma mulher real. Parece uma cena de filme, uma cena onírica, de um filme voltando atrás. A mulher abaixa lentamente as pernas, endireita o corpo, vai subindo e retomando a posição vertical. Até pousar com graça, os braços estendidos, no lugar não visível de onde saiu. Um anjo sem asas.

Alguma vez pensei em pular. O medo que eu sentia, o efeito indizível de pensar que poderia não voltar mais ao normal - a ser quem eu era -, ficar para sempre me torturando ou cair do "lado de lá", levou-me a imaginar um final parecido. Se eu não consigo me recuperar, nesses momentos pensava, vou preferir morrer. Mas a possibilidade de enlouquecer para sempre me alarmava de maneira passageira (nunca se tornou assunto, nem com J.-P.). O medo é um sentimento, e minha mente, ocupada como estava em resolver uma pergunta após outra, deixava que esse e outros sentimentos aflorassem, mas dava-lhes muito pouco espaço, muito pouco tempo, insuficiente para poderem se assentar.

Volta e meia penso, agora, se não seria melhor ir para frente, passar para um novo estágio, abrir-me ao que vier. Todos temos nossas feridas, disse a mulher do parque, nossos traumas. Eu tenho a minha, mas seus efeitos já ficaram para trás. Esta não é uma escrita terapêutica - não mais do que qualquer escrita é. Quando ela ter-me-ia sido útil, eu estava privado da liberdade e da calma mínimas para empreendê-la. Por isso nos cadernos só há desabafos, exortações a mim mesmo a não desfalecer, citações encontradas em livros que eu achava que podiam me ajudar, breves notas. O que me leva agora a querer reviver, contar tudo? Uma espécie de dívida contraída com alguém? Foi bom ter começado a escrever anos antes de ficar doente. Porque o que me permitiu não afundar foi a convicção de que aquilo que me estava acontecendo mereceria, no futuro, ser contado; embora precária, essa foi minha tábua de salvação. Não importa quão grandes sejam os sofrimentos na vida de um escritor: superados, serão para ele o material de mais valor. Nesses anos da neurose em Barcelona, li o livro escrito por A. E. Hotchner sobre os últimos anos da vida de Hemigway. (Esse livro eu pude ler com atençao, talvez porque tratasse de uma doença mental, Hemingway sofreu de mania persecutória, paranóia). E uma frase do escritou reafirmou minha convicção. "Como diabos se lamentar dos dramas pessoais", disse Hemingway a um fragilizado Scott Fitzgeral, em Paris, "quando se é escritor?. Ao contrário, se ha de estar agradecido, porque qualquer escritor dever ser gravemente ferido antes de poder escrever". É sobre a ferida que se há de escrever, "permanecendo tão ligado a ela como um sábio em seu laboratório". A convicção me deu esperança - viver para contar. E essa esperança foi tão genuína, teve tanta força, que sobreviveu até hoje, quando não é mais necessária. Estou em dívida com uma esperança...

Thursday, April 08, 2010

Tragédia no Rio e Niterói: sempre os pobres

180 pessoas mortas, sem contar mais de 200 ainda soterradas. Mais de 10.000 pessoas desalojadas ou sem casa... Todas as vítimas pobres. Leio isto nos jornais internacionais (a Globo só fala em "moradores", e gosta muito de mostrar esses "moradores" na hora da tragédia). Bom, se as vítimas são sempre os pobres, num país com recursos como o Brasil... de quem é a culpa, hein?

Situação "extraordinária", catástrofe "natural"? Se eu fosse povão ("morador" de "comunidade de baixa renda"), pegava em armas, redistribuía a riqueza, fazia a falada (só falada, sempre impedida) reforma fiscal com minhas mãos.

O mesmo vale para New Orleans. O mesmo vale para o Haiti em relação com os países ricos. Mundo podre, sistema vampiro.


PS: E ainda tem de aguentar essa, uma locutora da Globo chamando pobre de burro. "Estão retirando seus pertences. Graças a Deus", ela diz, "eles têm consciência do que é prioritário". E um homem fala: "Primeiro retirei meu sobrinho...". Não, ele ia retirar seu iPod.

Monday, April 05, 2010

Fazer 90 anos (de novo)

Posto de novo o vídeo que postei sábado e ontem retirei, por um aviso de YouTube segundo o qual tinha sido "bloqueado em alguns países". Fiquei com medo, porque minha irmã não está num país que seja, vamos dizer... (bom, não vamos dizer nada). Finalmente, outro aviso de YouTube me deixou mais tranquilo: o problema não era com governo nenhum, e sim com a Sony (fo*$#se a Sony; será pela música do Serrat, no fim do vídeo?; ele acharia legal, OK?). Enfim, o Yuji gostou muito e até comentou, e eu continuo gostando muito do vídeo que minha irmã fez, desde a Guiné Equatorial, para cumprimentar nossa avó no dia de seu 90º aniversário. Como escrevi sábado, é um vídeo familiar, mais tem mais, por isso achei bom postá-lo. Tem uma receita culinária catalã (conill amb suc). Tem a alegria dos amigos guineanos de minha irmã. Tem música africana (e dança). Tem guineanos falando catalão. Tem coisas importantes que eles dizem (em espanhol). E tem o respeito e admiração pela velhice típica de algumas culturas africanas (e asiáticas), que no Ocidente já quase se perdeu.