Sunday, March 28, 2010

That Smart Stranger

Este post é dedicado à Ana Santos, que me perguntou sobre a teoria de engavetar os textos por uns meses antes de enviá-los para alguma revista ou editora. Bom, ela não falou em teoria, nem é uma teoria: é aquela ideia de se afastar por um tempo dos textos próprios antes da última revisão. Eu lhe disse que a escritora Zadie Smith falava nisso de um jeito bem engraçado e radical, e que segundo ela era melhor deixar os textos guardados por anos, não por meses. Isso está no ensaio "That Crafty Feeling", que é a versão revisada de uma palestra que Zadie Smith deu no curso de escrita criativa da Universidade Columbia em 2008. Ela dividiu a palestra em 10 pontos, e o mais importante é o 8, que trata disso ao que a Ana se referiu.


8. Step Away from the Vehicle

You can ignore everything else in this lecture except number 8. It is the only absolutely twenty-four-carat-gold-plated piece of advice I have to give you. I've never taken it myself, though one day I hope to. The advice is as follows.

When you finish your novel, if money is not a desperate priority, if you do not need to sell it at once or be published that very second - put it in a drawer. For as long as you can manage. A year or more is ideal - but even three months will do. Step away from the vehicle. The secret to editing your work is simple: you need to become its reader instead of its writer. I can't tell how many times I've sat backstage with a line of novelists at some festival, all of us with red pens in hand, frantically editing our published novels into fit form so that we might go onstage and read from them. It's an unfortunate thing, but it turns out that the perfect state of mind to edit your own novel is two years after it's published, ten minutes before you go onstage at a literary festival. At that moment, every redundant phrase, each show-off, pointless metaphor, all the pieces of deadwood, stupidity, vanity and tedium are distressingly obvious to you. Two years earlier, when the proofs came, you looked at the same page and couldn't see a comma out of place. And by the way, that's true of the professional editors, too; after they've read the manuscript multiple times, they stop being able to see it. You need a certain head on your shoulders to edit a novel, and it's not the head of a writer in the thick of it, nor the head of a professional editor who's read it in twelve different versions. It's the head of a smart stranger who picks it off a bookshelf and begins to read. You need to get the head of that smart stranger somehow. You need to forget you ever wrote that book.


PS: Zadie Smith escreveu três romances. O último, On Beauty, é 10. Depois reuniu vários textos de não ficção, entre eles "That Crafty Feeling", no livro Changing My Mind, que eu não li completo. Ela fala sobre alguns escritores, sobre alguns romances, sobre cinema, sobre uma semana que passou na Libéria ou sobre sua família. Dos que eu li, posso dizer que o ensaio mais longo, o último do livro, sobre David Foster Wallace (para ela o melhor escritor de sua própria geração), "The Difficult Gifts of David Foster Wallace", é nota 10 também.

Traduccions de Brasil 61 (A emenda & O soneto, de Antonio Brasileiro)

Traduzo um dos poemas de Antonio Brasileiro que a amiga Ana Santos me enviou.


La enmienda y el soneto

1. El soneto

Durante el temporal, sepamos ser
el tallo pequeñito que se dobla.
Pues una cosa es cierta: todo acaba.

Y el cielo estará limpio como estaba.

2. La enmienda

Durante el temporal, sepamos ser
el tallo pequeñito que se dobla.
Pues una cosa es cierta: todo acaba.

No sólo acaba sino que no acaba.

Saturday, March 27, 2010

Da falta de orgulho

Como virou filme e o filme teve uma grande campanha de marketing (está em todos os jornais, no Brasil e na Espanha), agora na Fnac e similares deve ter pilhas do livro que eu traduzi para o catalão em 2004. Deveria estar orgulhoso, não é? Pois não estou, me importa un pepino.





PS: "Renato Russo faria 50 anos hoje", isso também está em todos os jornais. (Faria, se não tivesse morrido com 36.) Não é preciso comemorar. Quem gosta dele, lembra sempre. E quem não gosta também, pois não passa um dia sem que toque alguma música da Legião nos cafés, nas lojas, nos cibercafés...

Monday, March 22, 2010

Capítulo 28 (novo rascunho)

Na luta contra a neurose dei muitos passos em falso. E os certos, que demorei tanto em dar, que por tempos considerei firmes como rochas, marcos no caminho que só me permitissem avançar, vejo agora que não o foram tanto, não me impediam voltar atrás. Nos inícios me importava com o que todo o mundo pudesse pensar (a padeira do bairro, por exemplo, se eu tivesse esquecido de cumprimentá-la); logo, só com o que podiam pensar os colegas; mais adiante, perguntava-me sobre aquilo que dizia respeito aos amigos. Até que, afinal, limitei à relação com Lídia minha necessidade de ser bom. Deixei de passar tudo pelo crivo. ("Você faz passar tudo pelo crivo, indiscriminadamente", disse certa vez J.-P.: "É um crivo indiscriminado".) Paralelamente, quando me dei conta do inútil de tentar adivinhar o que os outros pensavam, resolvi me preocupar unicamente com o que pensava eu, com minhas intenções, fossem estas percebidas ou não. Eram passos certos, embora não soluções, pois a natureza do pensamento obsessivo complicava-me igualmente chegar a conclusões sobre mim. É interessante, não eram passos que eu desse sozinho: a própria doença era minha companheira nessas guinadas, com sua força para se perpetuar, fornecer-me obstáculos novos. Como dizendo: você não se preocupa mais com isso?, vê se consegue não se preocupar com isto. A neurose é um bicho.

Os métodos para responder as perguntas também foram mudando, não sempre para bem, com muitos tropeços. Eu os abria e encerrava, à procura de algum que me retornasse, me reaproximasse, por um momento que fosse, ao modo de pensar normal. As vocalizações internas, as verbalizações externas, o auxílio procurado ao escrever com o dedo em paredes e portas,... tudo fez parte dessa busca. (Supreendeu-me, sofri com a dificuldade de os psicólogos entenderem o caráter das vocalizações internas. Imaginem uma frase, com todas as palavras. Logo pensem ela, não nela, com todas as palavras. Terão uma frase carente de sentido, afastada de seus referentes, sem conotações. Algo bem diferente do pensamento que flui, que não se sente e que não é feito só de palavras.) Ao ver que em sua forma de frases não conseguia responder as perguntas, tentei uma maneira mais completa de pensar: a evocação, a recriação na mente das cenas, com a maior riqueza, o maior contexto e colorido que eu conseguia dar-lhes. E se durante muito tempo me empenhei em fixar as respostas para evitar que uma mesma pergunta voltasse a me importunar, tentando reter a forma exata da resposta na memória, às vezes anotando-a (uma frase com sentido, um pensamento entrevisto: "Não, não é possível que Eulália tenha pensado que eu só queria os livros"), terminei por deixar de fazê-lo, querendo que o pensar corresse, livre de interrupções, ciente de que uma pessoa sã não precisava fixar nada... Os métodos descartados, no entanto, continuavam a existir, seguiam à minha disposição, para quando os novos não funcionavam. Nunca deixei de jogar mão de todos eles.

A urgência com que queria estar bem levava-me a esquecer que a luta era contra uma doença, não contra suas manifestações. Assim, perdida a perspectiva, deixava que as perguntas ocupassem o primeiríssimo plano. E tentava de novo fixar as respostas, queria de novo ser bom com todo o mundo... Com a guarda baixa, venciam-me inclusive as perguntas mais gratuitas, aquelas não conectadas com nenhuma suposta "ética". Um meio-dia, na residência, peguei a caixa de cotonetes de cima da cômoda de Douglas, esvaziei-a sobre meu cobertor. Não sei o que precisava contar, acredito que os anos transcorridos entre duas datas. Pouco importa. Nesses casos, a necessidade era me demonstrar que eu não era incapaz de fazer isso. Somar, subtrair, lembrar a forma correta de escrever uma palavra: são limitações absurdas, muito difíceis de aceitar, e o neurótico esquece que podem ser só temporárias; pensa, pelo contário, que o aproximam de quem perdeu totalmente a razão. Fui separando de um em um os cotonetes da pilha, contando-os; várias vezes, porque junto com a solução vinha a dúvida, que me obrigava a recomeçar... Quando por fim dei por bom o resultado, assaltou-me outra velha obsessão: Douglas, "o outro", não podia suspeitar o que eu fiz - que eu fazia tais coisas. Demorei um tempão colocando os cotonetes de volta na caixa, arrumando-os em forma de hélice, nivelando as pontas de algodão com a palma da mão com cuidado de não achatá-las.

O desejo de estar bem nunca foi tão intenso, tão imperativo como no verão de 2000. Compartilhava a opinião de Lilian e Ray: estava diante de uma oportunidade extraordinária; e não queria sentir a frustração de não aproveitá-la. Estava, além do mais, na cidade que eu gostava. Contudo, e embora eu já soubesse o que era necessário saber sobre a neurose, "não estava doente", não tinha essa consciência clara. Só tinha, assim pensava, uma pergunta para resolver, a última, a acusação mais grave. Liberando-me dela, tudo correria bem. Se houvesse sido mais consciente da doença, teria procurado ajuda. Falado com Kate ou as outras duas amigas que eu fiz. Sabia que um dos melhores especialistas em transtornos obsessivos trabalhava ali mesmo, no Hospital público de Bellevue. Em vez de falar ao telefone com meu pai sobre Lídia e Menorca, ter-lhe-ia prestado maior atenção quando punha o acento na neurose, sobre a que, nessa altura, sabia tanto ou mais do que eu.

Andrea Doria

(De baixo astral.)



(De baixo astral... eu não estou mais. :) Mas deixo a música aqui. Porque é linda. E porque é o Renato.)

Saturday, March 20, 2010

Shutter Island

A long time ago..., isto é, umas cinco ou seis décadas atrás, nas salas de cinema podia se assistir a filmes como o último de Scorsese, Shutter Island. Filmes que eram arte e espetáculo - não só espetáculo, e muito menos espetáculo ruim, como agora, nestes tempos de cinema moribundo.

Eu o assisti ontem, fui sozinho; e, antes de começar, torci para que alguém sentasse ao meu lado, pois sabia que ia ter medo, medo de verdade. (Antes do filme passaram dos trailers de "medo de mentira": um de Halloween II, do outro não lembro o título.) Tive sorte, dois casais sentaram, um a cada lado. E estava certo, passei medo, e em casa não consegui parar de pensar no filme.

Agora entendo a crítica da Folha, que começava assim: "Vão, vão ver o filme de Scorsese. E vão de novo. E de novo. E mais uma vez...". Não era porque fosse um grande filme. É um grande filme. Mas é por outros motivos que deve ser visto mais de uma vez. Eu vou fazê-lo. Uma segunda vez, para, vamos dizer, "assisti-lo de um outro ângulo". E se fosse crítico, estudante ou profissional do mundo do cinema (i.e., Uri, Pedro, Leo), iria certamente uma terceira, essa para ver como Scorsese consegue construir tal artefato.

Minha amiga Clotilde me disse que era uma bela homenagem a Hitchcock, porém menos inteligente. Confesso: acho os filmes de Hitchcock demasiado cerebrais, nunca me tocaram. E se Clotilde se referia a Vertigo, como imagino, não sei o que dizer - assisti ao filme na TV, e só uma vez. Se Vertigo é mais inteligente (pode ser: para muitos cinéfilos, e para alguns filósofos, é o melhor filme da história), Shutter Island vai atrás.

Vão, vão ver A Ilha do Medo, com esse título de parque de atrações que, é verdade, dá medo, de tão ruim. Mas só se estiverem psicologicamente bem, ou "estáveis". (Abstenham-se também ex fumantes, DiCaprio está sempre com um cigarro na mão.) Que bom que esse cinema moribundo conta, ainda, com a dupla Scorsese-DiCaprio, que a cada dois ou três anos nos presenteia com uma maravilha diferente...

(Não dá para falar nada do enredo. Dizer, só, que tem a ver com traumas e outros transtornos mentais, e que a ilha do título é o lugar onde moram pacientes considerados perigosos.)

Friday, March 19, 2010

Capítulo 27 (novo rascunho)

Em e-mails enviados a amigos apelidei Douglas de O Monstro de Michigan. Meu companheiro de quarto na residência era grandão, meio obeso, de testa e bochechas infladas. Usava pequenos óculos redondos de aro de metal e prendia a cabeleira cor de palha num rabo-de-cavalo. À diferença da maioria de alunos (com a exceção da dúzia de estrangeiros, garotas de 22 anos, recém formadas), tinha a minha idade, como Kate; e, como Kate, era atencioso e afável - ou assim foi comigo a primeira noite. Falou muito; eu fiz perguntas e escutei. Exprimia-se com clareza, devagar, pensando enquanto falava, e sua voz grave era agradável, serviu-me de bálsamo, teve o poder de me acalmar. Quando fechei o livro que eu lia por cima e apaguei o abajur, minha intenção era me pôr a pensar (antes de dormir, eu dispunha de tempo de sobra; e, como nos banheiros, podia mexer os lábios sem me preocupar com ser visto); mas consegui esperar um pouco, gostava de ouvir Douglas falar. Tocamos no assunto das armas, que sempre me deixou perplexo. Fazia um ano do massacre do Instituto Columbine. Douglas me explicou algumas das crenças do americano do meio-oeste, com as quais ele podia não concordar, mas que entendia e respeitava. Disse que as mensagens da grande mídia tocavam fundo, eram assimiladas, interiorizadas acriticamente pela população. O problema era essa mídia estar tão concentrada, o que deixava em descrédito a qualidade da democracia no país. As pessoas não renunciavam às armas de fogo porque sem elas sentiam-se impotentes diante do próprio Estado, que (essas pessoas pensavam) não só não iria defendê-las, quanto era capaz de atacá-las. Assaltos e atos de violência comuns - o medo de o vizinho estar também armado - tinham pouca importância. Era medo do detentor do poder, resistência ao monopólio da força (e outros) pelo Estado. E se para alguns isso era sinal inequívoco de paranóia, para outros era questão de bom senso e até liberdade. (Agora, com a crise, isso mudou. A classe média tem medo de que aqueles que têm menos, aqueles que estão passando mal, aborreçam-se, façam uma revolta, procurem briga com os que ainda desfrutam de uma vida abastada. Por isso tantas armas são vendidas, para os uns se defenderem dos outros. Hoje o medo é local.) "Nice meeting you, Roger", ouvi do nada, minutos após termos apagado as luzes e ficado calados; dito como eu nunca tinha ouvido, não como formalidade, senão como pensado nesses minutos no escuro. Essa noite, o sono e o bem-estar causado pelas palavras de Douglas venceram, e a pergunta foi ficando para o dia seguinte, adormecendo comigo.

Nunca voltamos a estar tão próximos. Passados uns dias, ele me disse que era gay. Não foi uma confissão, nem uma proclama. Surgiu naturalmente em alguma conversação. Dar-me-ia a ler o enredo de um romance que estava escrevendo, ou pretendia escrever. Quinze ou vinte páginas, o resumo detalhado de uma série de histórias entrecruzadas de amores e ódios, traições e vinganças passionais. Não sei o que eu pensei, era incapaz de me concentrar em qualquer leitura. Agradeci-lhe a confiança e o fato de querer saber minha opinião. Passadas umas semanas, nossos diálogos haviam se reduzido ao mais elementar: cumprimentos, perguntas triviais sobre o dia. Coincidíamos pouco. Eu passava muito tempo no apartamento, dormia cedo, e ele passava o dia fora e à noite costumava sair. Dava-se muito bem com Ernest e com o filho dele, que também estava na cidade, tocando o saxofone num club de jazz. O motivo do distanciamento, no entanto, foi outro. Douglas nunca disse nada, não perguntou. Mas, pelas horas de convivência, em que eu não me preocupava com esconder meu estado de ânimo, e provavelmente muitas vezes agi como se não houvesse alguém ao meu lado com quem o mais natural teria sido conversar, acredito que percebeu que alguma coisa estava errada. (Talvez foi o único a perceber.) Não se importou, deixou-me quieto. Sabendo como Kate interpretou meus silêncios, porém, Douglas pôde ter pensado qualquer coisa. Afinal de contas, ele não estava lá quando ultrapassei os limites. E são muitos os possíveis tormentos. Se a colega de quarto de Kate não saía da cama, outras meninas, de Estados longínquos, drogavam-se para suportar a pressão de ter de encontrar um emprego e assim poder ficar na cidade grande.

Capítulo 26 (novo rascunho)

Eu já gostei da solidão. No colégio e nos primeiros anos de faculdade, eu escrevia, e então a solidão era boa. Fazia-o com prazer e facilidade, sem dar-me conta, e o que me empurrava era esse prazer, embora mentiria se dissesse que o reconhecimento pelos outros não me animava, fazia-me sentir orgulho ou, com todas as reticências, levava-me a pensar num futuro próximo em que poderia escrever mais e melhor. A neurose também estragou isso (e, anos depois, tive de reaprender tudo de novo, lutando contra o medo e a angustia). Já neurótico, fiz da solidão uma necessidade. Procurava-a para tentar resolver as perguntas e para não cair em novas ciladas (dar respostas que logo iria me arrepender de ter dado, fazer comentários pelos quais iria ter de me julgar). Tomava o café da manhã sozinho, demoradamente, antes de entrar a trabalhar na construção do centro comercial - necessitado desse momento de paz antes de enfrentar o convívio. De carro, levando comigo um livro, escapava seguido à praia de Castelldefels, larga e comprida; ali, deitado na areia, sentia menos pressão e podia manter as perguntas na linha. É só agora, em Nova York, neste pequeno apartamento provisório, que a solidão é indesejada, e estar entre quatro paredes deixou de me agradar. Aqui não tenho nada. Raras vezes ligo a TV, a telona de plasma que me espelha e que a zeladora, uma mulher de sotaque francês, apresentou-me admirada ("TV a cabo, mais de 200 canais"), acariciando a borda, olhando-a e me olhando, como se o aparelho fosse um companheiro a quem eu, dando uns passos à frente, pudesse cumprimentar. Pelo visto, diminuiu a capacidade de o público manter a atenção focada por mais de 15 minutos - proliferam os programas com essa duração. O que é possível oferecer em 15 minutos, eu não sei; com sorte, a chance de o espectador dar uma ou duas gargalhadas (que não é necessariamente pouco). Para filmes, filmes longos, sou eu quem não tem mais paciência, não para assisti-los do sofá. Na geladeira, também último modelo, o mais interessante é o ímã, o mascote de uma loja de brinquedos, um dragão antropomórfico multicor. Dentro há somente há água e maçãs; o que compro na loja de conveniência, como no dia. Na máquina de lavar roupa não toquei. Prefiro ir à lavanderia, do outro lado da rua, onde sempre encontro alguém. Quando não é uma família inteira, com as crianças (tenho a sensação de que são elas, as crianças, que mantém viva na cidade a possibilidade da interação com estranhos), é a dona, que na verdade não é tal, só quem cuida do lugar - ou passeia, porque aqui tudo é automático: mulher alegre e prestativa, de Santo Domingo, louca por novelas e muito maquiada, que rebola no local abafado como num salão de festas. E tenho, finalmente, a cama, o dormitório, que eu chamo de cama porque isso é o que contém: um colchão enorme que deve ter sido difícil introduzir aqui e um armário cujas portas abrem só 30° e seria melhor desmontar. Estou obrigado a entrar no quarto descalço, ou com um pé à frente do outro, como na corda bamba. (Podia ter perguntado à mulher se o quarto foi invenção dela ou de algum locatário com debilidades especiais.) O colchão sobredimensionado, onde caberiam até quatro pessoas, é só para mim, e aproveito-o para deitar em posição de crucificado, em T ou em X, porque faz bem às costas. Sinto saudades de quando dividia quartos. Em casa, quando criança, com meus irmãos; em hotéis, em pousadas. Nem digo a cama e com uma mulher. Vontade, simplesmente, de compartilhar o espaço. É bom dormir num quarto com alguém. É ruim - não é engraçado - que escrever seja um trabalho solitário.

Thursday, March 18, 2010

Instantâneos dos aposentos da mansão de minha amadíssima irmã, na Guiné Equatorial

(Enquanto isso, do outro lado do oceano Atlântico, onde se cruzam a linha do Equador e o meridiano de Greenwich...)


La salle à manger.


La cuisine.


Le vestiaire.


La chambre à coucher.


La climatisation.


La douche.


Vous savez où est la Guinée?

Tuesday, March 16, 2010

É você que tem

Algumas noites eu vou dormir escutando o segundo CD da Mallu Magalhães. Procurei se ela já fez outros clipes (além do de Shine yellow, que já postei). Ainda não. Mas tem vários vídeos do programa "Canja IG" da TV IG (televisão online).

Saturday, March 13, 2010

:'(

Glauco e seu filho foram assassinados ontem. O mundo das HQ (comics) do Brasil, criadores e leitores (ele me fazia sorrir cada dia, na melhor folha da Folha de S. Paulo), está abalado. Era um dos grandes. Há um sem fim de homenagens de seus colegas em universohq.

Minha personagem favorita era o Faquinha, habitante do morro:


Glauco

PS: Acho símbolo da boa saúde de um país que o próprio Presidente envie seus pêsames pela morte de um "simples cartunista". Não sei se isso aconteceria na Espanha...

Wednesday, March 10, 2010

Capítulo 25 (rascunho)

Kate lia Theroux, Pamuk, Mafuz e outros autores que eu não conhecia. Gostava, também, de literatura juvenil. Certa vez, fomos a uma livraria especializada, na rua 16. Começou a pegar livros de mesas e prateleiras, mostrando-me, comentando-me empolgada cada um deles. Eram livros lidos na adolescência, pelos quais guardava o maior carinho (eu não resisti, fui empilhando-os nos braços, comprei quase todos). E agora estava encarregada da edição de medíocres romances históricos e novelas de mistério, de guias turísticos, de livros estrambólicos (enviou-me um destes últimos, para eu dar risada: um livro sobre como tecer suéteres, calças, etc. com pelos de cachorros de estimação). Por isso imagino os motivos que a levaram a querer, em suas palavras, se arrastar até debaixo da mesa e morrer; a abandonar a editora, com ódio desse mundo, para não voltar mais. Era tudo demasiado entediante, demasiado deprimente, demasiado estúpido.

Acredito que foram essas circunstâncias as que mudaram também seu caráter. A Kate das cartas e e-mails que eu recebia em Barcelona, sarcásticos, de língua afiada, por vezes assustadores, já que ela parecia se auto-flagelar, culpar-se pelo que estava vivendo, não era a garota que eu conheci terminado o curso. Comigo, passeando, assistindo a concertos, divagando sobre livros e filmes, sobre projetos de futuro, ela sempre foi doce, de jeito afável. Era propensa a lucubrações (do tipo que gosta de imaginar o que o gato de uma amiga pode estar pensando), mas também lúcida e pé no chão. Física e psicologicamente sensível e forte. Lembro de como, na residência, era paciente com sua companheira de quarto, que, mais nova, deprimida, passava o dia inteiro na cama, ouvindo uma e outra vez, incessantemente, o mesmo CD de Belle and Sebastian.

Capítulo 24 (rascunho)

No café que já chamo de meu (The Cozy Cup, que é de verdade aconchegante), tive uma ideia que deixaria Ray orgulhoso de mim, dando pulinhos em seu gabinete da universidade ou onde ele agora estiver. A história saiu no jornal, quase inteirinha. Não tenho um título ainda, nem uma capa (que incluirá, certamente, a frase "baseado em fatos reais"). Será o novo Joe Gould's Secret, embora diferente, não só para leitores cultivados (meu nicho é bem maior); e sem o velho charlatão vagabundo como protagonista: em seu lugar, a jovem mais sensual que se possa imaginar (sem exagero: sua foto está no Times). Uma história com um forte apelo sexual. A jovem protagonista sai de casa para correr em Riverside Drive, usando uns shorts curtinhos e um top. Sai, e logo esquece quem ela é (o assunto é candente, neurocientistas do mundo inteiro se debruçam sobre esse tipo de doenças). A garota é de família rica e tem 18, 19 anos máximo. Primeiro procura ajuda na vizinhança, interpela velhinhas passeando cachorrinhos, que nem param para escutá-la, acham que é louca. Ela corre sem saber aonde ir. Entra na loja da Apple: geeks e turistas esquecem sua paixão por engenhocas e ficam embasbacados com a garota semi-despida, que num computador tenta checar o e-mail (recuperar sua identidade, em vão); não se aproximam, não falam com ela (estamos na zona nobre da cidade, onde as distâncias se respeitam, e eles são tímidos demais). Começa o périplo da moça pelas ruas. Alguém lhe paga um café num Starbucks (a cidade não é, afinal, tão desalmada). Mas também há quem se aproveita da infeliz. Um mendigo compartilha sua comida com ela (eles comem com as mãos), e depois cai em cima dela. Completamente perdida, a jovem está à sua mercê, como uma boneca (é estupro, mas não aquele estupro, um estupro leve). Ela faz amizade com todo tipo de malandros, tradicionais e novos (vivemos a pior crise desde a Grande Depressão). Para isso, cria uma persona, já que, mesmo não sabendo quem é, cresce sua percepção do risco. (Estamos nos bairros marginais da cidade, em contraste com o Upper West Side, de onde ela vem.) Com os pés destroçados (lhe roubam os tênis) e as roupas rasgadas, cada vez mais suja e cada vez mais sexy, ela se mimetiza com o entorno, vira uma alma errante a mais. Até que, não aguentando a dor que lhe produz caminhar, se joga no rio (não para se matar). À deriva, chega numa ilhota com um farol. (Já não estamos na cidade, nem na civilização; a civilização está lá, a escassas milhas dela, ela a enxerga, mas não pode voltar.) Esses faróis são operados automaticamente. Mas nessa ilhota tem um faroleiro (ela não fica falando com as pedras): um velho barbudo e sujo, homem do bem - solitário e alcoólatra. Ele cuida da garota aparecida como por encantamento, oferece-lhe comida e agasalho. Deseja-a, é claro, mas não a estupra: tenta seduzi-la. Porém, um dia se excede, e ela se joga de novo na água (agora sim, para se afogar). (Talvez eu faça uma reflexão, estabeleça um paralelo entre a doença dela e os males da sociedade.) Ela perde a consciência. À beira da morte, entrevê quem é. Ela tem sorte: o capitão do ferry a Staten Island avista um vulto boiando, para máquinas, resgata-a. A jovem recobra totalmente a identidade e soluça, feito criança, sem roupa nenhuma, no deck do navio que a leva de volta a Manhattan. Não somos donos de nós. Vejo os displays nas maiores redes de livrarias, com a imagem dela em tamanho real. Vejo o filme, como Ray desejaria.

Capítulo 23 (rascunho)

Tomei o café da manhã no hotel e arrastei a mala praticamente de uma ponta à outra da rua 14, a vista fixa no chão, contornando com rápidos golpes de pulso os obstáculos na calçada. Meus olhos registravam formas e cores - das camisas das pessoas que passavam por mim, dos artigos expostos nas vitrines (o resto era tudo cinzento, amanheceu nublado) -, mas elas me chegavam como em surdina, deixando só uma leve impressão. Esforçava-me em reter a imagem das cruzes, que, aos poucos, iam escorregando do caderno, deixando de simbolizar qualquer coisa.

Quando cheguei à residência, um prédio novo, cor lilás, vi jovens empurrando contêiners contra as portas de vidro da entrada (terminado o ano universitário, iam embora, esvaziavam os quartos). Preenchi um formulário no guichê da recepção, e enquanto uma mulher comprovava meus dados li, com certa desilusão, que o café, um corredor ao longo da fachada, não ia reabrir até o início das aulas, em setembro.

O apartamento, no 3º andar, tinha uma sala, um banheiro, uma pequena cozinha (não separada da sala) e dois quartos, um a cada lado. O chão da sala era de carpete escuro; as paredes, de um branco desbotado, sem nenhum enfeite. Por toda mobília havia um sofá com armação de madeira ruim, encostos e assentos removíveis, e, ao fundo, em frente à janela, uma mesa redonda e três cadeiras. Amontoados na cozinha, copos, panelas e pratos sujos de dias atrás. Inóspita, com restos de comida por tudo e latas de cerveja jogadas na mesa e no chão, a sala parecia uma terra de ninguém. Talvez porque eu já estivesse resignado, esse abandono não mexeu com meu ânimo: é aqui que eu vou morar, simplesmente pensei.

Meu colega de quarto havia chegado. Suas malas estavam no estreito vão entre as duas camas, e em cima de um colchão vi um envelope como o que eu tinha na mão, com o nome Douglas Green e a sigla MCH escritos com marcador.

Nas estantes à cabeceira da cama coloquei livros que depois não ia ler. Na mesa embaixo das estantes enfileirei fotografias que não ia olhar mais, que só olhei naquele momento, ao apoiá-las na parede cuidando de não deixar oculto o rosto de nenhum amigo. As grossas pastas-fichário que recebemos no primeiro dia de aula - Book Publishing e Magazine Publishing -, com documentação exaustiva sobre cada palestrante e cada assunto do curso, também ficaram lá, esquecidas na pequena escrivaninha. Só as usaria de manhã, para me informar de quem iria nos falar durante o dia e decidir se poderia não assistir às palestras.

Capítulo 22 (rascunho)

"Cuidado com os livros que vocês vão querer editar", disse uma das primeiras palestrantes a nos visitar no prédio de Cooper Square - uma profissional de prestígio. (Na reunião de confraternização, Lilian e Ray, os coordenadores do curso, anunciaram que teríamos o privilégio de aprender, em menos de três meses e com os melhores profissionais, o que qualquer um que trabalhasse numa editora demoraria anos em aprender.) "Cuidado porque ninguém vai querer saber de nada que não venda mais de 30.000 exemplares. E isto é o que vocês vão ouvir: se quiserem editar esse tipo de livro, vão trabalhar numa editora independente." O próprio Ray dedicou a sessão inicial a falar de marketing, usando expressões como "selling points", "bestselling potential" ou "media relevance". Em que vocês reparam antes de comprar um livro?, perguntou. A cor da capa, o título, o assunto, a extensão? Ou no nome do autor, nos prêmios? Antes de comprar os direitos de qualquer original, pensem: o que levaria alguém a deixar $ 25 no balcão? Não esqueçam, podem-se comprar muitas coisas, com $ 25. Tenham um mercado em mente. Não pensem que todo o mundo vai querer comprar seu livro - pode ser que não o compre ninguém. Pensem em nichos de mercado específicos. Seu tamanho não é desprezível, neste país. Posso me permitir comprar esse original? Façam uma avaliação de custos e benefícios. A reputação do autor: vocês querem um autor com autoridade, com experiência. Existem livros concorrentes? Investiguem. Certifiquem-se de quais são os concorrentes. Há livros comparáveis? Este vai ser o próximo Bridget Jones' Diary? Ou o próximo... quê? Sim, mas também vai ser diferente. O assunto é de atualidade?, é controverso o bastante? Terá repercussão na mídia? Poderá virar filme? Se assim for, cuidem de que o livro esteja nas lojas dois meses antes. Considerem a hipótese de que seja o primeiro livro do autor: ninguém o conhece, isso pode ser bom. Mas, o editor deverá reescrevê-lo? Reescrever é um trabalho danado - demais, para um editor. Falem com os representantes, mimem os representantes comerciais da editora. Eles decidem, afinal, quais livros vão pular na hora de apresentar o catálogo às livrarias. Pensem como marqueteiros. Como editores, vocês não se dirigem ao público leitor.

Sunday, March 07, 2010

Darín

Sábado passado assisti, com a Anna, ao filme El secreto de sus ojos. Assisti concentrado, pensando, pelo que tinha ouvido, que podia ser uma obra mestra. A Anna adorou; eu gostei muito, mergulhei no filme, o que para mim não é pouco. Mas, ao sair, fui meio cri-cri, comentei com ela aqueles pequenos detalhes que tinham me desapontado, que me fizeram torcer o rosto e pensar, ai, isto não está à altura do resto. Só que - agora caiu a ficha, ao ler o nome dele num artigo do El País - esqueci de comentar, para ela e para mim mesmo, o mais importante: como Ricardo Darín está impressionante, de que maneira ele encarna sua personagem. Acho que foi por isso, porque só vi o protagonista da história, que esqueci de dizer: como é grande o Darín!


PS: Sorte para o filme, amanhã, no Oscar. Essa festa com tantos filmes medíocres (começando por Avatar, essa coisa brega).

PS2: Darín no CQC argentino:

Saturday, March 06, 2010

Traduções ao português 11 (Running to Stand Still, de U2)



Ontem fiquei cantando esta canção, me veio à cabeça depois de muito tempo, mas eu lembrava bem. É uma música do lado B (ou a última do lado A?) do álbum The Joshua Tree (1987), de U2, e eu a escutei, com 15 anos (em 1990), quatro ou cinco vezes seguidas, numa aula de inglês em Dublin, onde passei três verões (três dos verões mais felizes de minha vida) "aprendendo" inglês (não era para aprender inglês que íamos). Depois não a escutei mais, não tocava nas rádios. (Só continuou tocando, até virar chata, de tão repetida, "With or Without You".)


Correr para não sair do lugar

Então ela acordou,
Acordou de onde estava, deitada quieta.
Disse, devo fazer alguma coisa
Sobre aonde estamos indo.

Subir num trem a vapor,
Sair da forte chuva, talvez,
Escapar da escuridão da noite.
Cantar ah, ah la la la de day
Ah la la la de day.

Doce o pecado, amargo o sabor em minha boca.
Vejo sete torres, mas só vejo uma saída.
Deves chorar sem pranto, falar sem palavras,
Gritar sem levantar a voz.
Sabes que tomei o veneno, da corrente de veneno
E então flutuei fora daqui, cantando
Ah la la la de day
Ah la la la de day.

Ela caminha pelas ruas
Com os olhos pintados de vermelho
Sob o estômago preto de uma nuvem, na chuva.
Atravessa uma porta
Me traz pérolas de ouro brancas
Roubadas do mar.

Está ansiosa,
Está ansiosa
E a tempestade explode em seus olhos.
Vai sofrer o arrepio da agulha.
Corre para não sair do lugar.

Tuesday, March 02, 2010

"Elle" au Musée de l'érotisme, Paris

Uma moça que há pouco esteve em Paris me mandou e deu permissão para publicar estas fotos do Musée de l'érotisme, que fica em Montmartre. Faço-o preservando sua identidade.



(Gostei do macaco. :p)







A moça-sem-nome me mandou, também, outras imagens do museu (estas não dá para dizer que sejam artísticas, mas enfim):





PS: Os nacionalistas catalães podem estar contentes, até nisso são diferentes dos espanhóis.

PS2: A moça e eu discutimos sobre o significado das três bolas brasileiras. Hoje entendi. A terceira bola é de futebol, é claro. Sempre que ela está rolando, as outras duas ficam quietas.

PS3: Tadinho do francês.