Wednesday, December 23, 2009

Anninha doutoranda!

Resultado da seleção ao Doutorado em Teoria da Literatura /2010
Por ordem de classificação


1. Andrea Ferras Wolwacz
2. Amilcar Bettega Barbosa
3. Anna Faedrich Martins
4. Milton Roberto Isé Colonetti
5. Cristina Barcelos Gutkoski
6. Paloma Esteves Laitano
7. ...


:D :D :D (Nem sei o que dizer... Está dito por e-mail... Sei o quanto tu merece. E estou tão feliz por ti!)

Parabéns, Anna!!! E parabéns para a Paloma também!


PS: Para não perder (estreou sexta em Barcelona). Sobre um conto de Eça de Queirós, Singularidades de uma rapariga loura, de Manoel de Oliveira. Seria bonito morar na Lisboa delicada de Oliveira...

Thursday, December 17, 2009

Indo para Barcelona passar as férias


Ramon


O Leo me pediu que contasse coisas de lá. Vou tentar! Vamos ver como está minha cidadezinha! Beijos a todos!

Wednesday, December 16, 2009

Oído en una cashe de Buenos Aires

El olor de una rosa, por ejemplo. Qué sé sho. Es grande! Y vos sos capás de sentir el olor de la rosa! Una puesta de sol. Es grande! Es brishante! Es como... total, nesesária, diría sho. A todo el mundo le agrada, no es sierto? Es bella. Entendés? Es algo... A todo el mundo le gusta! ... Sho no sé. Ahora pensá en un libro. El Quijote? Sí, está bueno. Es válido. No es grande? Vos no pensás que es? Emosiona, verdá? Es como,... como diría sho, como una rosa! Comprendés? Es más que un libro! Es arte! Vos podés no comprender. Pero es arte! Es bello! No podés desir que no. Vos sentís el olor de una rosa. El arte no es más que eso!

E mais um conto muito bom

Este, muito especial: da amiga e ex-colega de oficina de escrita criativa Ana Santos. Publicado em destaque na revista Cult de dezembro. O título é "O Fazedor de Guarda-chuvas", e é muito bom mesmo, o que não é surpresa para quem conhece ela. Queria colocar o link aqui, mas a revista quase não tem matérias online. Comprem! :) Afinal de contas, literatura se paga, né? O comecinho: "Na cidade em que nunca chovia os homens eram secos".

Monday, December 14, 2009

Capítulo 19 (novo rascunho)

Anne, no som tocou "Satellite of Love" (baixinho, como sempre, para não incomodar os jovens que trabalham) e você ainda não veio. Terminei de comer uma omelete recheada, menos cheirosa e saborosa do que a que você comeu. Li o jornal do princípio ao fim. Passei do meu limite de refills de café e agora vou embora. Mas um dia terei a coragem de bater à sua porta e convidá-la a passear no Prospect Park. Se o tempo estiver ruim, poderíamos entrar no museu. Têm uma bonita coleção de máscaras africanas, lá.

É uma lástima, porém, pois hoje eu estava pronto, preparado para lhe contar o pouco que eu soube desse homem do Peru. Quem sabe tanto faz: é uma história trágica, não é conversa de sábado no parque, nem sei se você ia gostar. Não sei nada de você, só que é linda. E que à noite escuta essa música melodiosa e triste. Porque é você, não há ninguém mais morando nos apartamentos do andar acima do meu.

Alberto R. é seu nome. Ele era camponês numa aldeia da província de Ayacucho, no Peru. Cultivava batatas que ia vender no mercado da capital: papas de vários tipos, formas e tamanhos; há papas de casca roxa, amarela, azul, nesse país, acredita? Deve ter sido durante uma dessas viagens. Quinze pessoas, a metade dos habitantes da aldeia, entre elas a mulher e a única filha de Alberto, foram assassinadas num ataque do Sendero Luminoso. Supostamente, teriam se negado a colaborar com os guerrilheiros. Foi no final da década de 60, quando os ataques indiscriminados eram comuns, tanto da guerrilha quanto do exército e dos paramilitares que diziam combatê-la. Alberto, que tinha pouco mais de vinte anos, ficou sem nada. Vendeu sua pequena propriedade e mudou-se a Ayacucho.

Dos seguintes trinta anos de sua vida não há notícia. Mas parte do relatório policial está na Internet, permite reconstruir o que lhe aconteceu em 1996. Ao que parece, morou por uns meses num quarto de pensão em Arequipa, 650 km ao sul de onde nasceu. No quarto, a polícia encontrou uma pilha de livros, só livros, não havia roupas sequer. Livros sobre os incas e sobre culturas andinas pré-incaicas. Também de astronomia. Junto com eles, algumas cadernetas, com notas em letra grande, porém difícil de ler. Alberto não deve ter tido uma formação escolar, quem fez o relatório zomba de sua escrita, qualifica-a de "típica de una chica de catorce años sin instrucción". Poderiam conter um pequeno tesouro, essas cadernetas. A única nota transcrita é reveladora, diz assim: "Los seres humanos son unas personas pésimas".

Alberto entrou no museu armado com um martelo. Essa frase é esquisita, "armado con un martillo". Um martelo não é, propriamente, uma arma, e tal inexatidão surpreende, sobretudo num relatório oficial. Passou rápido pelas quatro primeiras salas das cinco que o museu tem, onde estão expostos objetos cerimoniais de ouro, prata e cobre, e estatuetas em argila e metal, e entrou na quinta, reservada a Juanita. Sem nem olhar para ela, ao contrário, segundo o relatório a imagem é a de um homem cabisbaixo (provavelmente ele esteve lá outras vezes, disso não há registro, as fitas se reutilizavam), tirou o martelo do bolso e golpeou com força o cristal, na altura dos pés da múmia. O cristal só rachou, e o segurança chegou na hora, um instante antes que Alberto golpeasse a urna pela segunda vez: derrubou-o, imobilizou-o no chão.

Juanita não sofreu nenhum dano. Por um tempo, foi retirada da sala, substituída por Sarita, tão antiga quanto ela, porém bem menos conservada. Hoje em dia, Juanita continua lá, em sua eternizada posição semideitada, as costas inclinadas para frente, os joelhos dobrados, os braços cruzados sobre o peito. Com os cabelos longos terminados numa fina trança e uma fratura de cinco centímetros na parte posterior do crânio, imperceptível ao olhar. (Ressonâncias magnéticas determinaram que a jovem morreu assim, com um golpe desferido de trás com algum tipo de bastão.) Com seu manto cerimonial, de cor vermelho e branco, seus brincos e pingentes e seus sapatos de pele.

Sunday, December 13, 2009

Um conto muito bom que li ontem

Alone, de Yiyun Li: um conto muito bom que li ontem e recomendo, sobre "a woman who meets an older man at a ski resort and tells him about a childhood tragedy in her past".

... Que li ontem à noite, quando me sentia exatamente... isso. Engraçado esses acasos da vida. Eu estava com um número da New Yorker que comprei na Fnac, ainda não tinha chegado ao conto, achei que ler o conto da revista poderia me fazer bem, virei as páginas e, de repente, esse adjetivo no título! :)

Saturday, December 12, 2009

Traduções ao português 9 (Cada una de tus cosas, de Andrés Calamaro)



Cada uma de suas coisas


Olhando o rio lhe escrevi
Enquanto lhe esperava,
Com o peitinho inquieto e alegre,
E um andar de não ser de aqui.

De aqui não me movi, de sua vertigem minha,
De seu sorriso vertical, que misteriosa é uma rosa de Hiroshima
E a rumba que há.

A rumba se ri, não sabe se é rumba,
Será um momento só,
De eternidade, de esses que me dá.

Todos os dias, todos os segundos,
Infinitamente, a alegria de viver,
O sentido que dá a vida viver contigo.

No céu, no chão, em cada uma de suas coisas,
No céu, no chão, em cada uma de suas coisas.

Wednesday, December 09, 2009

Capítulo 18 (novo rascunho)

Foi graças ao que chamei de meu pequeno, improvável sucesso que conheci Kate. Assim como Anne, ela gostou da história do homem e a múmia. Na metade do curso (terminada a parte dedicada à edição de livros e antes de iniciada a dedicada à edição de revistas), na lanchonete onde minhas colegas e eu comemorávamos o fim do trabalho (elas comemoravam, eu me sentia aliviado, liberado por ter falado em público e me saído mais ou menos bem), veio me dar parabéns, elogiar o projeto de livro que eu acabava de apresentar. Seus foram os elogios que mais me surpreenderam e deixaram lisonjeado - mais do que os do diretor e os do velho Ernest, que tanto fariam por mim, depois, com o intuito de que eu encontrasse emprego na cidade. Foram os de Kate. Não por ela ser tão bonita, seus olhos cálidos, cor de avelã, o rosto e o sorriso largos, o cabelo curto e preto (como o de Taís); ou tão inteligente; ou por estar vencendo sua prudência e proverbial timidez (tudo isso eu iria perceber mais tarde, em nossos longas caminhadas e conversas nos cafés), e sim por serem os mais insuspeitados, por virem de alguém em quem eu não tinha reparado, uma pessoa com quem, nesse instante me dei conta, eu deveria ter algo em comum.

Difícil dizer como foi a apresentação. Nos primeiros minutos, minha voz tremeu, e eu só olhava meus papéis. Quando o tremor na voz passou, aproveitei alguma pausa na fala para, por meio segundo, levantar a vista do atril. Enxergava as pessoas sentadas na primeira fila: o diretor, os coordenadores. O resto da sala estava escura, os colegas disseminados pelas fileiras de bancos, até o fundo, agrupados por editoras fictícias (a nossa foi a última a se apresentar). Do início ao fim, falei sem pensar, tratando unicamente de verbalizar as anotações, sem esquecer nada e no melhor inglês de que fui capaz. Minhas colegas estavam de pé no estrado, à esquerda, e entre elas e eu, numa telona, foram se alternando a projeção da capa do livro e alguns outros slides com dados sobre produção.

Tempo depois, perguntaria a Kate por que só veio falar comigo então. Queria saber se, até aquele dia, eu tinha lhe parecido um aluno medíocre, ou vulgar. Não, ela disse: se alguma coisa, você me pareceu alguém altaneiro, desdenhoso dos demais (não lembro da palavra exata que ela usou). Maravilha. O fato de eu estar sempre tão calado, fumando, evitando os colegas quando se reuniam para ir almoçar (porque eu não me sentia em condições de manter, ao redor de uma mesa, uma conversação), foi interpretado por ela como sinal de arrogância. Eu!, eu que talvez não em Nova York, porque há vários anos carregava a doença e já não me importava com o que os outros pensassem, mas sim antes, fiz tanto para que ninguém percebesse o que acontecia?! Kate me dava vontade de rir. Então a neurose não transparecia, não se mostrava? Era para cada um o que bem entender?

Eu sabia das condições em que preparei e escrevi a apresentação. Por isso os elogios não me serviam, só me deixavam perplexo. Nas semanas anteriores, tinha ido com frequência à sala de computadores mais próxima da residência, ciente de que não conseguiria trabalhar. Entrava e, passados cinco minutos, saía para fumar. Entrava e saía de novo, incapaz de escrever uma linha. O que fazia era ler e-mails e tentar pesquisar. Lia páginas na Internet (resenhas, por exemplo, deixadas por leitores na livraria Amazon) como um autômato, impossibilitado de conectar informações, de articular nada novo a partir delas. Imprimia algumas páginas e, sem ânimo para conversar com os colegas que encontrava ali (esforçava-me, apenas, para sorrir para eles, ou os cumprimentava com um inclinar de cabeça), saía ao pórtico do prédio, desejando que não aparecesse ninguém mais, pois só desejava fumar, conseguir que a pergunta me deixasse momentaneamente tranquilo, sem ter de falar sobre nada, de explicar por que estava com esses olhos e essa cara.

Às vezes aparecia o bom e velho Ernest, colega de curso que, quase em idade de se aposentar, queria abrir uma pequena editora em sua livraria de Indiana. Gordo, sempre com a camisa por fora da calça, de cabelo branco amarelado e bochechas e nariz sanguíneos, de irlandês, Ernest fumava e conversava comigo. Mas ninguém ia à sala de computadores, nessas horas do fim da tarde, ou da noite, a não ser para trabalhar, e nossas conversas eram breves. Ele entrava e eu ficava. Acendia um outro cigarro e dava uns passos pela calçada; voltava, encostava numa coluna, os pés cruzados, olhando para o outro lado da avenida. O sol, menos inclemente, suavizava as fachadas, deixava prédios em sombra e prédios em luz, fazia visíveis as partículas de poluição no ar, que criavam uma abóbada de um lado ao outro, por cima dos carros.

Recentemente li as memórias de uma pessoa com múltiplas fobias, músico de profissão. Quando, em sua vida - ele contava -, encontrava-se face a uma situação de risco ou perigo real (sem importar se ele estava num espaço pequeno e fechado, numa estrada em campo aberto, num local lotado de desconhecidos), todas suas fobias desapareciam de imediato; e, nesse lapso de tempo, como qualquer pessoa, reagia, voltava ao normal. Não é o caso do neurótico - ou não foi o meu. Lembro de, certa vez, voltando para casa com Lídia, ter sido assaltado, receber um soco na cara e, de caminho ao hospital e enquanto o médico costurava minha sobrancelha, continuar analisando se o que na hora da janta eu tinha dito a uma amiga estava certo ou errado - sem reagir nem ser capaz de tentar acalmar minha namorada. Na apresentação, no entanto, a neurose talvez tenha me ajudado. Porque o pensamento obsessivo embotava minha capacidade de sentir, me emocionar, e ele esteve lá comigo, no estrado, ainda que encolhido, recolhido num canto. Isso, naquela circunstância, para alguém tímido como eu, pôde ter sido bom. Impediu que me exprimisse melhor, mas, ao mesmo tempo, imunizou-me contra a pressão e a vergonha que, de outro modo, sem dúvida teria sentido ao falar ante aquela plateia.

Sunday, December 06, 2009

Capítulo 17 (novo rascunho)

Hoje tudo se conjugou para levantar meu ânimo. Na rua, fui cumprimentado com ênfase por um homem de meia-idade que passeava com dois cachorros (o bairro não é tão frio e deserto, ao fim e ao cabo). O sol saiu, depois de vários dias cinzentos. Passei meia hora acordado na cama, embalado pela música que, agora eu sei, vem do andar de cima, que aos sábados e domingos toca também de manhã e que já não me incomoda, ao contrário, começa a me agradar. A garçonete que me serviu a fatia de torta, escolhida no balcão pelo visual, piscou-me um olho. Bendito sábado! Sei que não por isso, é claro, as frases virão; não por isso vou conseguir escrever. Por que não me dar uma folga, então? Afinal de contas, sábado não é dia de semana. Afinal de contas, meu desejo inconfesso é encontrar Anne, deixar que Anne me encontre. Recostado numa das poltronas, de frente para a rua, leio o jornal. No início, com atenção relativa, pois a cada figura que se aproxima pela calçada olho por cima das páginas para ver se é ela, confiado em que, num momento ou outro, será.

No jornal está tudo errado. A crise, quando não tratada diretamente, ecoa nas notícias de todos os cadernos. Na cidade se perdem empregos em ritmo acelerado. Os teatros reduziram o número de apresentações, as pessoas assistem cada vez menos aos eventos esportivos e ao cinema. Os donos de restaurantes se lamentam, têm de reduzir pessoal. Só enchem os Starbucks e os cafés da rede de livrarias Barnes & Noble, onde a gente fica por horas sem ter de gastar um centavo. Os mais prejudicados, os trabalhadores imigrantes, voltam aos seus países, e os que não o fizeram (entrevistados no jornal) esperarão um ou dois meses, ver se a situação melhora, e, caso contrário, também vão voltar. Em Miami, famílias inteiras perderam suas casas e se instalaram embaixo de pontes, com a aquiescência da prefeitura, que parece não ter uma outra solução a oferecer. Na Califórnia, criam-se comunidades à beira de estradas, onde pessoas moram em seus carros ou suas tendas de acampamento. Os membros do gabinete do novo presidente Barack Obama foram anunciados esta semana. Leio com curiosidade seus perfis. Dizem-se esperançados. Valentes, os herdeiros deste desastre! Terão de reconstruir, ou reinventar, o que um analista chama, em primeira página, de país "não só economicamente falido". É irônico: no som toca "Perfect Day". Mas é, é um dia bom para mim. E seria fantástico, um dia perfeito, se Anne aparecesse agora. A música talvez me desse a coragem para convidá-la a passear, falasse por mim. Pode ser que também trabalhe aos sábados.

Se ao menos Kate estivesse aqui. Sempre pensei que iria reencontrá-la ao voltar: a única amiga que ficou na cidade, contratada por uma editora logo que o curso acabou. Ela também perdeu o emprego. Por enquanto sua odisseia terminou. Com 18 anos, saiu do Havaí para se afastar da família. Estudou e se formou na Universidade da Califórnia. Considerou que a distância da família ainda era pouca e veio fazer o curso de edição aqui. Morou em três apartamentos, cada um pior do que o outro e cada vez mais longe do centro. Em suas cartas, sempre desenhava um croquis e descrevia o lugar. Por pequeno que fosse, convidava-me, escrevia que a gente se viraria no espaço que houvesse. O primeiro nem era um apartamento, era um quarto, no Soho. Tão pequeno que teve de comprar um beliche sem a cama de baixo para poder embutir a mesinha e o computador. Na área comum, as fechaduras não fechavam, as torneiras pingavam (por dias, a água quente do chuveiro não pôde ser fechada, tudo enchia de vapor); ratos se afeiçoaram por ela. Na mesinha, sob a cama, passou noites em branco, lendo originais, revisando provas. As dez ou doze horas trabalhadas na editora não eram suficientes - nunca são, ninguém consegue morar em Manhattan sem se entregar totalmente ao trabalho, nem os parasitas de Wall Street. A editora era prestigiosa, mas o salário era baixo, e não aumentava. Fosse isso pouco, os superiores aproveitavam sua docilidade de recém chegada, seu ar em aparência medroso, para alfinetá-la, atordoá-la, enchê-la semanalmente de trabalhos dos que ninguém poderia dar conta num mês.

Sua primeira mudança foi para o bairro de Greenpoint, no Brooklyn (para a mesma rua Bedford onde eu moro, só que quilômetros mais ao norte). Alugou um conjugado minúsculo, porém tudo para ela, onde cabiam uma cama, a mesa com o computador e um sofá-cama militar que ela encontrou na rua, para acolher os amigos de passagem na cidade. Greenpoint também se tornou caro demais. Então foi para um bairro mais pobre, onde a maioria da população era negra, e ela, de origem e feições asiáticas, sentia-se uma minoria entre uma outra minoria. As vitrines das lojas estavam protegidas com tábuas; predominavam os conjuntos de habitação subsidiada.

Em algum ponto entre tais mudanças, eu nunca soube exatamente o porquê, saiu da editora, abandonou para sempre o mundo editorial. Em certa ocasião, tendo sido relegada de seu gabinete para um cubículo, escreveu: "I no longer have a view, but the temptation to fling myself out the window is no longer there". Apesar das dúvidas, não perdeu a vontade de permanecer na cidade. Fez um novo curso, de documentação; trabalhou, com maior prazer, embora também exigida até o limite, num programa de debate político da televisão pública. Quando a série de debates terminou, ficou sem nada. Há poucos meses foi para Chicago, morar por um tempo no apartamento de um amigo, companheiro na época de estudante na Califórnia. São as últimas notícias que eu tenho: Kate procurando emprego em Chicago antes de se resignar a voltar com a família, de ter de voltar ao Havaí, de onde sonhou em sair durante toda a adolescência.

Triste final do Campeonato Brasileiro

Hoje a cidade acordou em clima tenso, e daqui a umas horas isto pode virar uma guerra. É o dia da última rodada do Campeonato Brasileiro. E, ao que tudo indica, o Grêmio vai entregar o jogo para o Flamengo no Maracanã, vai fazer do Flamengo o campeão. E tudo... Tudo porque se empatar ou vencer no Rio, o campeão vai ser o eterno rival, o Internacional, que tem um jogo fácil aqui em Porto Alegre.

Para que o escândalo seja menor, o treinador do Grêmio já tirou do jogo os principais jogadores titulares, para poupá-los da vergonha. Vai escalar sete reservas. Nada disso aconteceria com meu Espanyol, que nunca entregaria um jogo para o Real Madrid, só para que o Barcelona não fosse campeão (primeiro é o Espanyol, e a dignidade do torcedor do Espanyol - e olha que a gente odeia o Barcelona); o Atlético de Madrid não faria o corpo mole contra o Barcelona, só para que o Real Madrid não ganhasse o título (primeiro é o orgulho do torcedor "rojiblanco").

Mas enfim. Aqui o título será para o Flamengo, e a vergonha será toda gremista. Vai entender.


PS: Espero estar errado. Mas falo pelo que andam dizendo toda a semana os torcedores do Grêmio, com um sorriso na cara. Querem que o seu time perca.

PS2: Não estava errado, não.

Friday, December 04, 2009

As 7 melhores da Rolling Stone

Para meu irmão Uri (e para quem goste), que está me pedindo mais e mais e mais música brasileira. (Todas estas músicas são maravilhosas... mas Uri, eu vou te trazer CDs mais atuais, OK.)

Estas são as 7 primeiras da lista (comentada) das "100 maiores músicas brasileiras", que saiu na Rolling Stone (brasileira) de outubro.

1- Construção, de Chico Buarque. "As estrofes são repetidas três vezes, com algumas palavras-chave sendo trocadas de posição. (...) Na primeira vez, o cantor apresenta a história de uma forma lógica, quase jornalística. Na segunda repetição (...) é levado em conta o estado psicológico do protagonista, que já estava se transformando num autômato. Na parte final, que não aparece na íntegra, o peão anônimo já se encontra demente e alucinado, não é dono de suas ações."

2- Águas de Março, de Tom Jobim, interpretada por Elis Regina. "O começo de 'Águas de março' já está impresso no fundo do subconsciente do povo brasileiro. (...) Descreve um momento típico da estação das chuvas do Brasil, o mês de março, que marca o fim desse período no verão, de chuvas torrenciais e ventania. (...) A melodia vai em um lento e malemolente crescimento em sintonia com a letra, como uma enxurrada e também como se fosse chuva aumentando de intensidade para no final prometer o início de uma vida renovada, sol e céu aberto, com o fim do ciclo das águas."

3- Carinhoso, de Pixinguinha, letra de João de Barro. "A mais famosa melodia da música popular brasileira continua eterna (...) mesmo tendo sido escrita há mais de 90 anos. (...) A interpretação clássica de Orlando Silva, de 1937, é de arrepiar até os mais desavisados."

4- Asa Branca, de Luiz Gonzaga e Humberto Teixeira. "A evocativa letra da canção fala da seca, das tristes condições de vida do sertanejo. A asa-branca entra como metáfora. A ave bate asas para achar uma vida melhor e o protagonista da canção faz o mesmo. Mas ele promete a seu amor que um dia vai voltar, quando a chuva cair de novo."

5- Mas que nada, de Jorge Ben. "Seu time perdeu mais uma? O dinheiro do mês acabou e hoje é dia 12? Mas que nada! Você precisa de um samba legal pra ficar animado. Não pode ser qualquer samba, tem que ser especial. Mas tem um samba diferente, misto de maracatu."

6- Chega de saudade, de João Gilberto (composição de Tom Jobim e Vinicius de Moraes). "O marco zero da bossa nova."

7- Panis et Circensis, de Os Mutantes (composição de Gilberto Gil e Caetano Veloso). "Uma das canções mais marcantes de Tropicália ou Panis et Circensis, de 1968, o disco-manifesto do tropicalismo, que juntou Caetano Veloso, Gilberto Gil, Gal Costa, Nara Leão, Tom Zé e os intérpretes da faixa em questão, Os Mutantes."


PS: Entrem no site sobre o tropicalismo, é muito bom!

Thursday, December 03, 2009

Writer's Block

Acho que meu irmão Ramon está querendo me incentivar a continuar... :)


Ramon

Thursday, November 26, 2009

Capítulo 16 (novo rascunho)

Se me importasse com datas, saberia o dia exato em que me aconteceu pela primeira vez. Faltava pouco para as férias de Natal, 1995. No antigo prédio da faculdade, na rua Balmes, quase não havia ninguém. Eram ao redor das 20 h, pois já tinha anoitecido. Fazia um mês que eu não via nem falava com Taís.

Estou no meio da escadaria aberta que leva do vestíbulo ao segundo andar, de face ao próprio vestíbulo e à biblioteca, por cujas portas de vidro vão saindo, em longos intervalos, os últimos estudantes. Estou sentado, pensando. A uns dez metros de mim, no corredor que comunica o vestíbulo com a entrada do prédio, meus amigos continuam conversando diante de um dos painéis envidraçados, iluminados por lâmpadas fluorescentes, onde estão penduradas, junto com avisos importantes do decanato, as folhas com as notas trimestrais. Eles virão me procurar, para irmos juntos embora. Eu vou me desculpar, dizer que vou ficar um pouco, buscar na biblioteca alguma coisa.

Há uns minutos tenho estado lá com eles, ao lado do painel que parece um aquário. E tenho perguntado a um amigo - um garoto alto, magro, de óculos - seu resultado numa prova. Ele tem respondido e, em seguida, surpreso e divertido, adicionado: "Eu já lhe disse". Eu tenho balbuciado, procurado de imediato uma maneira de me justificar, de justificar o esquecimento, atrapalhando-me, acredito, na escolha das palavras; e sido invadido por uma sensação de pavor nunca experimentada.

Por isso me retirei e me sentei na escada. Dou voltas ao que ele deve ter pensado (eu não me importo nada?). Tento lembrar as palavras de desculpa usadas (o que eu disse, exatamente?), deduzir o efeito que podem ter-lhe causado. Culpo-me pelo esquecimento, pergunto-me o seu porquê (é meu amigo, não deveria ter lembrado?). Meses atrás, antes de conhecer Taís, não teria me formulado tais perguntas, nem me preocupado com tão pequeno deslize. Semanas atrás, teria sabido respondê-las. Agora estou pensando, como nunca pensei. De uma maneira a tal ponto esquisita que em breve vou deixar de chamá-la de pensar.

Taís está comigo, tão presente que a imagino sentada ao meu lado na escada. A comparação é terrível. Ela sabia do que os outros gostavam. Qualquer percalço alheio a deixava sinceramente preocupada. Ela não teria esquecido algo tão importante como a nota de uma amiga numa prova; se ruim, teria ficado triste, se boa, se alegrado tanto ou mais do que a pessoa afetada. Colado no degrau, eu me censuro, me faço perguntas. Não tenho intenção de me levantar e ir embora, não sem antes ter-lhes achado resposta.

Além da inaudita urgência com que sinto que devo respondê-las, as perguntas adquirem uma forma pouco usual: são parecidas com frases, frases com todas as palavras, como se coisificando. À medida que as repito em minha mente, as palavras se tornam também mais concretas, como se as pensasse uma atrás da outra, separadamente. E, nesse processo, perguntas, frases e palavras, depois de pensadas, desfazem-se, esmigalham-se.

Os vidros que separam vestíbulo e biblioteca e a luz artificial, refletida nas placas azul-claro das paredes, transformam o lugar em algo parecido ao interior de um grande aquário, tal qual o painel, extravasado. E eu não estou nele: sinto-me, também pela primeira vez, dentro de uma espécie de bolha. Há, sem dúvida, um espaço entre meus pensamentos e o mundo ao meu redor, uma separação entre meus pensamentos e a maneira habitual ou normal de pensar.



Existe consenso entre os psicanalistas: as pessoas relutam em desistir de seus sintomas; superar sua doença representa um risco, pois ela serve como cura de outros conflitos. Numa sessão, muito depois desse primeiro episódio e de inúmeros mais, a doutora J.-P. fez essa consideração: que eu usava a doença com algum fim. A neurose, ela disse, era uma arma que eu usava contra o que eu queria ou não queria. Tive dificuldade em compreender. De que você tem medo?, ela perguntou. Lembrei dos meses em que namorei Taís, quando sempre tive medo: medo de sua tristeza ou melancolia; de fazer com que ela afundasse ainda mais. Disse à doutora que não suportei a culpa de tê-la magoado; que não suportei descobrir, ao lado dela, como eu era egoísta. Repeti que foi então que saí dos trilhos: quando quis deixar de sê-lo, quando quis mudar (ser, paradoxalmente, parecido com Taís). Mas entender minha doença como cura? Como arma para suportar (para não sentir) o peso da culpa ou do que eu descobri em mim? Se eu me infligi tal pena, tal tortura, com esse fim (pena de sete anos que poderiam ter sido mais), então meu inconsciente não teve piedade nem senso da medida algum.

Riu Guaíba sortit de mare (en català!)

Wednesday, November 25, 2009

Traduções ao português 8 (First of the Gang to Die, de Morrissey)

Comprei You are the Quarry, de Morrisey, pensando que era o último álbum dele. (Não é, é de 2004.)

Para a Rose (a melhor música do CD, eu acho), que costumava dançar The Smiths com a mãe, enquanto faziam faxina em casa aos sábados.




Você nunca esteve apaixonado
até que viu as estrelas
refletidas na represa
e você nunca esteve apaixonado
até que viu o sol nascer
atrás da Casa para os Cegos
Somos os Lindos Ladrões Mesquinhos
e você está em nossas ruas
onde Hector foi o primeiro da gangue
com uma pistola na mão
e o primeiro em servir na prisão
o primeiro da gangue que morreu / oh meu
Hector foi o primeiro da gangue
com uma pistola na mão
e o primeiro em servir na prisão
o primeiro da gangue que morreu / oh meu
Você nunca esteve apaixonado
até ter visto a luz do sol bater
sobre ossos humanos esmagados
Somos os Lindos Ladrões Mesquinhos
e você está em nossas ruas
onde Hector foi o primeiro da gangue
como uma pistola na mão
e o primeiro em servir na prisão
o primeiro do gangue que morreu
oh garoto maluco
Hector foi o primeiro da gangue
com uma pistola na mão
e uma bala no pescoço
o primeiro Garoto Perdido sob o chão
E ele roubava dos ricos e dos pobres
e dos não muito ricos
e dos muito pobres
e roubou todos os corações

Tuesday, November 24, 2009

Art Gallery


Untitled
Gabriela (Brazilian, born 1985)
2009. Wood, 42 x 75 x 34,5 cm





Untitled
Ramon (Spanish, born 1976)
2009. Photograph, 44 x 66,9 cm

Beluga o ballena blanca

Meu querido irmão Ramon ganhou pelo aniversário, de minha querida cunhada Nelia, um fim de semana em València. Quando eu soube, pedi a ele que não esquecesse de fotografar a baleia branca que tem lá, no L'Oceanogràfic, aquário que foi construído há poucos anos, dentro da Ciudad de las Artes y las Ciencias, e que é um dos maiores de Europa. Ele não esqueceu. Este animal é um dos meus preferidos. (Quando criança, eu tinha um álbum de figurinhas titulado "Mamíferos"; meus preferidos eram os cetáceos, e, dentre estes, a orca e a beluga ou baleia branca.)


Ramon

(Nesta foto eu até consigo ouvir os gritinhos que ela dá.)

Monday, November 23, 2009

Capítulo 15 (novo rascunho)

Abro os cadernos que trouxe comigo, os mesmos que um dia entreguei ao meu pai para que os guardasse fora do meu alcance. Embrulhou-os em papel de jornal e os deixou ao fundo de uma gaveta. Para evitar voltar a examiná-los à procura de respostas, esse dia também apaguei a maioria de meus e-mails. É ridículo como o neurótico busca afastar de si a tentação; e ao mesmo tempo é heroico. Uma pessoa sã não pode imaginar o esforço que para ele supõe, por exemplo, não comprovar pela segunda vez se apagou o fogão. Ele fica de pé, ensimesmado, pensando que não deve fazê-lo (porque, no fundo de si, sabe que não deve fazê-lo), mas logo, irremediavelmente, volta sobre seus passos e o apaga de novo. O acende e o apaga de novo. Algo o impulsiona, uma força à qual não pode resistir e que não é mais do que uma dúvida fabricada. O acende e o apaga. O acende e o apaga. Tantas vezes quanto precisar.

Numerei os cadernos por ordem cronológica, do primeiro ao quarto. Falta o quinto, o caderno de Nova York, que uma tarde em que não aguentei mais joguei pelo cano de lixo do 3° andar da residência estudantil. E do primeiro arranquei, não sei quando, as páginas que tratavam do fim do relacionamento com Taís. Essa semana faltei muito às aulas, fiquei trancado em casa, lendo e pensando. A cumprir, inconscientemente, uma espécie de penitência; a examinar, com consciência e rigor desmedidos, o que acabava de acontecer.

Taís foi a garota que, indiretamente, por ser uma pessoa boa e generosa, pôs ao descoberto meu egoísmo. O que hoje posso escrever sobre ela sem mentir é muito pouco - cabe num post-it: Ela era boa. A pessoa melhor e mais triste que jamais conheci. ("A bondade personificada", eu diria a J.-P., que sorriria, sem dizer nada.) No fim de uma aula, ouvi uma voz doce e infantil e estaquei. Sentada no tampo de uma mesa, uma garota falava com exaltação de um romance que tínhamos lido. Como o simples fato de eu parar, de unir-me à roda, pôde mudar tanto minha vida! Porque só alguém como ela poderia ter me causado tamanho choque moral.

Apaixonei-me por seus olhos, grandes e castanhos, redondos como o seu rosto e de um cândido entusiasmo. Tudo o que eu sentia vinha deles. Se lembrava-se do avô, de quando ele a buscava na saída da escolinha e a levava a passear no Park Güell, ou das manhãs de domingo, quando assistia com o pai às peças de teatro infantil da Fundação Miró (aproveitando para voar muito longe, esquecer que, no dia seguinte, devia voltar à escola), era em seus olhos que eu via a cena. Por isso eu gostava tanto de ouvi-la falar: ela se transportava. No bairro de La Salut, desconhecido para mim, onde Taís morava, o passado para ela devia ter sido mais feliz, por isso a alegria vinha de tão fundo. Feito os de uma criança, seus olhos brilhavam com fascínio em resposta a estímulos ínfimos, como o produzido pelo aroma de uma xícara de chá, ou pela visão de um entardecer especialmente luminoso, ou pela descoberta de um novo espetáculo de dança em cartaz (e ela se dava conta, era engraçado vê-la se ruborizar, refrear-se, como se existisse razão para isso, como se fosse excessivo se maravilhar com tão pouco), e logo, de repente e com igual facilidade, umedeciam-se, viravam dois poços sem fundo. Nos tempos da escola, ela me contou, quase não falava com ninguém, como se fosse muda; no segundo grau, ficava por semanas inteiras em casa, trancada no quarto, onde lia sem parar.

Andávamos pelas ruas de paralelepípedos, as ladeiras empinadas de La Salut, de casas baixas e caiadas, reluzentes sob o sol. Ela me assinalava lugares que conhecia bem, casas de familiares ou amigos, vivos ou mortos. Mostrava-me o bar onde o avô, de quem sentia tanta saudade, passava as tardes jogando dominó. Quando ela, criança, chegava, não havia dominó que valesse: ele se desculpava, levantava-se da mesa, e, rejuvenescido, saía a passear de mãos dadas com a neta, deixando os colegas de partida ciumentos. (Se algum deles ousasse imitá-lo, a dona do bar retrucaria: "Trabalhar no que, se você aqui ganha mais?".) Perdíamos-nos pelas trilhas e recantos do Park Güell - seu parque -, com a cidade aos nossos pés e o mar lá longe, que, visto da praça, parecia subir vertical até o céu.

Pensar que esses momentos não fazem parte da história. Se houvesse sido isso, só, quem sabe eu já teria escrito sobre a paixão desse pobre homem por Juanita. Mas, Anne, o que você acha tão estranho? Qual é a diferença, ao fim e ao cabo? Não sei se é solteira, se é ou foi casada, se tem amantes. Mas seja quem for que dorme ao seu lado, a quem você toca, com quem você fala, a quem você ama, no modo como você o vê não é mais real do que uma múmia. Ah, se não fosse porque é passageira! A paixão amorosa, l'amour fou, encheria o seu e todos os consultórios do mundo.

Houve mais, e o que houve estava em minha cabeça e nas páginas do caderno que arranquei. Nelas, para me eximir de culpa - com o dano já causado -, analisei o namoro com Taís da maneira que, primeiro no colégio e depois na faculdade, aprendi a definir, analisar, relacionar conflitos bélicos, romances, poetas, períodos artísticos, sistemas políticos, crises econômicas e tudo o demais. (García Lorca cabia inteiro em meia página; o crack de 29, em menos de 80 palavras.) A exemplo dos grandes filósofos, ergui um edifício absurdo, porém lógico e cheio de significado. Dissequei sentimentos e estados de ânimo, encontrei causas e efeitos, dei dimensão de categoria aos traços de caráter de Taís, reduzi-a. Até achar, no fim, verdades incontestáveis, que tracei com uma régua.

Nunca pensei tanto como durante esses meses (quando ainda era capaz de pensar, ou pensar era o que eu achava que eu fazia). Taís-boa e Taís-triste: não havia uma sem a outra. Triste porque não se queria. Taís-inocente e Taís-desvalida, resignada (alguém tinha lhe dito que nunca seria feliz). Gênio de sensibilidade. Entregue aos outros, por quem nunca deixou de se preocupar, Taís-sacrificada. Contente ao meu lado mas incapaz de, sozinha, ter-se em pé (porque seu contentamento não dependia dela). Amante das velhas tradições mantidas no bairro e dos romances da Barcelona de pós-guerra (Taís de um tempo que não era o atual). Na praça da estação de metrô de Vallcarca, abraçava-me, apertava-me com força, aferrava-se a mim. Eu, encostado na balaustrada, o rosto colado ao dela, sentia-a, mas não a olhava; impotente e medroso, olhava para as copas das árvores em cima de nós e afundava. Ela, olhando para o lado oposto, a ponte lá embaixo- ou o céu, afundava comigo, compenetrada. (A mesma garota a quem, em outros momentos, bastava um sorriso para me desarmar.) Você é bom, ela dizia; e eu respondia, citando Pascual Duarte: Yo, señor, no soy malo, que não é a mesma coisa.

Sinto vergonha de contar o que eu vi nela. Nem sei até que ponto eu não a inventei. E se passou tanto tempo, e essas conclusões arruinaram tanto tudo, que é improvável que recupere qualquer recordação fiel. O mais valioso que eu tenho são três fotografias, que guardei num envelope fechado. Taís com oito anos, na escola, de camisa pólo branca, abraçada com sua melhor amiga, as mãos uma no ombro da outra, sorrindo, ela com um espaço entre os dentes da frente, o cabelo curto, pretíssimo e copioso, em forma de capacete. Taís com catorze anos, em casa, de bailarina, com uma meia-calça bege e um vestido preto de alcinhas, os pés juntos, em meia ponta, o braço esquerdo e os dedos estendidos, como a acariciar o ar, o direito recolhido, um buquê de flores na mão, uma dessas flores no cabelo. Taís me abraçando, vinte anos, a boca entreaberta, os olhos, os lábios e as maçãs do rosto brilhando, o cabelo à chanel, com a franja desajeitada, suando; seu ar de menina, de garota mais nova, sua camiseta e seu vestido preto de bolinhas, de garota mais velha; um pinheiro e o mar atrás de nós.



Não preciso do histórico da faculdade para, comparando-os, saber que os resultados dos primeiros anos foram tão bons quanto os dos últimos. Como pôde ter sido assim? Se durante as provas, antes de começar a divagar, por exemplo, sobre questões referidas às atrocidades cometidas pelos espanhóis na conquista de América (lembro-me bem: filosofia política), eu dedicava longos minutos, fingindo olhar pela janela pensativo, a intentar decifrar o significado de ter dito a um amigo, dias antes, que eu não gostava de cachorros? Se antes de cada aula me trancava em algum dos banheiros da faculdade para tentar resolver a pergunta que me incomodava, para poder entrar na sala livre da perturbação? Passei incontáveis horas trancado em banheiros: de casa, da faculdade, de restaurantes, de bares. Primeiro vocalizando internamente, depois dizendo frases em voz alta, logo escrevendo nas portas e as paredes com o dedo indicador, como quem escreve no quadro-negro, mas sem deixar sinal; escrevendo várias vezes, pois quando o pensamento não acompanhava a escrita, ou a escrita não acompanhava o pensamento (o "a" não saía bem redondo), recomeçava a operação. Tentando com todos esses métodos.

Lembro de portas pintadas de roxo, de azul, de preto; da penumbra onde eu ficava de pé. De meu caminhar apressado pelo corredor, até o fundo do restaurante; de subir ou descer escadas, se o banheiro estava num outro andar. Não podia ficar lá dentro por mais de dez minutos, se me demorasse mais iria levantar suspeitas entre os amigos. Com sorte, via a resposta à pergunta, e então, rápido, sem dar tempo a uma outra se formar, voltava à mesa, com alívio, ansioso por participar da conversação. Mas essa nova pergunta aparecia, e de novo eu não estava mais ali. Então ficava quieto, fingindo que escutava, embora nada do que os amigos dissessem pudesse captar minha atenção. Só me restava esperar o café, quando, com um cigarro na mão, poderia conversar por cinco minutos mais.

Friday, November 20, 2009

Capítulo 14 (novo rascunho)

Não procure em fúteis brigas de infância entre irmãos, poderia ter dito à doutora J.-P., nem em inexistentes conflitos familiares. Procure, melhor, nos livros que li na faculdade, com suas idealizações, ordenações, sistematizações. Procure nas chamadas ciências humanas. (Sigam chamando a economia de ciência, agora, com a crise que afeta o mundo inteiro e que ninguém soube prever; digam isso aos nova-iorquinos que nunca imaginaram que iriam comer sopa na igreja de Chelsea.) Quão ingênuo eu fui, quão absurdo ter buscado auxílio em Montaigne ("Querer, desde agora, isto e aquilo, mas sem desposar-se com qualquer coisa que não seja nós mesmos. Ou seja, que o demais esteja em nós, mas não tão unido e colado que não possa desprender-se sem nos arrancar a pele e algum pedaço de nós"); ter lido sobre o amor e sobre a amizade depois das turbulências do namoro com Taís. Se Taís foi o fator que precipitou a doença, a predisposição só pôde vir dessas leituras. Nada mais pode explicar que minha compreensão de Taís fosse tão distorcida, minha análise do fracasso do relacionamento tão errada e tão irracional. Só aqueles livros, e a maneira em que os li: anotando, resumindo, esquematizando; reduzindo esquemas até que coubessem em post-its.

Honte à Thierry Henry



Ireland não merecia isto. Os irlandeses gostam de futebol como ninguém.



Thursday, November 19, 2009

Capítulo 13 (novo rascunho)

Alguém escreveu que nunca deveríamos sequer tentar voltar aos lugares onde fomos felizes. Mas quando fugi para Nova York eu não acreditava mais no que lia nos livros. Sempre fui de tudo ou nada, e entre 98, quando me formei, e 2000, quando fugi, deixei absolutamente de ler. Não só isso. De freqüentar a biblioteca da faculdade, onde um mês antes das provas começava a estudar, lendo, um dia atrás do outro, até as 12 h da noite, obras literárias, filosóficas ou históricas dos mais diversos autores, passei a trabalhar num quartinho de dois por três metros, num contêiner de obra ao lado de uma escavação. O que viria a ser o maior centro comercial de Barcelona era então um buraco monstruoso, de forma triangular, 18 metros de profundidade e quase 40 mil m2; à beira do mar, com dezenas de muros de contenção, uma multidão de operários, caminhões, misturadores de cimento subindo e descendo por rampas de terra, todo tipo de outras máquinas cujos nomes tive de aprender.

Meu trabalho era o de tradutor e intérprete, mas logo fui dispensado da segunda função, da qual passou a ocupar-se exclusivamente minha colega. Eu já estava doente, e toda minha capacidade de concentração teria sido pouca para entender e traduzir o que diziam uns aos outros norte-americanos e espanhóis. Minha colega e eu ficávamos a maior parte do tempo na cabine, e o fato de as cartas e documentos a serem traduzidos chegarem de maneira intermitente me dava a oportunidade de fazer o que eu mais gostava: descer à obra. Pegava emprestados um par de botas e um capacete protetor e saía acompanhado por algum dos engenheiros estagiários (que, mais do que os engenheiros chefe, que preferiam ficar nos contêiners com seus planos e seu ar condicionado, estavam encarregados de passar as ordens aos grupos de operários e controlar que tudo corresse bem). Gostava de andar pelas rampas, pisar no barro do fundo da escavação, passear entre os pilares metálicos e os de concreto armado, ver como o concreto era vertido para formar as lajes. Admirava o reflexo das nuvens nas superfícies líquidas, banhadas para a cura do concreto. Perdia-me nos bosques de barras de aço que sustentavam as lajes já secas. Depois de anos de estudos, sentia satisfação e alívio - e um certo orgulho - por estar, de algum modo, participando na construção de algo material.

Wednesday, November 18, 2009

Cobain

Nunca fui fã do Nirvana (eu sempre estou meio atrasado, em questões musicais... :o), mas desde que assisti ao filme Last Days, de Gus Van Sant, fiquei interessado pela pessoa de Kurt Cobain, e hoje comprei o livro Cobain by The Editors of Rolling Stone, uma compilação das matérias escritas na revista antes e depois de sua morte. Queria compartilhar a capa posterior, que adorei. É do ilustrador Philip Burke. E este é o post n° 600 do blog. Parabéns! :p




PS: Do livro Renato Russo de A a Z, que eu ganhei do amigo Ronaldo. Cobain segundo R. Russo, em 1994 (ano em que Cobain se suicidou): "O homem é o melhor letrista que apareceu nos últimos dez anos. O cara era fera. Fica até difícil explicar como eu o achava bom. Foi uma grande perda. Era poeta de mão cheia, e não apareceu ninguém como ele. Não com a sua idade, falando as coisas que ele falava"; "Em geral, o rock'n'roll é muito adolescente. A poesia que existe nele, se existe, é sempre uma coisa de oitava série. Aliás, eu sou acusado disso. Mas, se você pegar uma letra do Kurt Cobain, vai ver que ele falava para todo mundo".

Tuesday, November 17, 2009

Capítulo 12 (novo rascunho)

Foi bom ter ido ao café todos os dias. Escrevi alguns parágrafos. Até sexta-feira, quando, por causa de uma tempestade de neve, metade da cidade parou. O tempo continua muito frio. Frigid, é a palavra que eles usam. É o inverno mais frio dos últimos anos. Anúncios no metrô pedem às pessoas que, se possível, permaneçam em suas casas. Nas margens do rio Hudson, formaram-se placas de gelo que balançam pela pressão da água, visível somente através de finíssimas fendas. Estes dias, a margem do rio oferece uma imagem surreal: a de um Airbus amarrado por cabos de aço a um dos cais, com o morro emergindo das águas e as asas e a parte da cauda submersas. É o avião que pousou no meio do rio e não afundou, ficou flutuando como um ganso, na tarde de minha chegada, simultaneamente ao pouso de meu avião no JFK.

Na sexta-feira da tempestade o café encheu, só ficou tranquilo depois do almoço. Nessa hora apareceu Anne. Foi um impulso: acenei; e, por ter acenado, senti que devia convidá-la a sentar. (Assim funciono.) Antes de ela despir o sobretudo e deixá-lo dobrado no banco, já estava arrependido. Anne é linda, de olhos grandes verde-escuros, cabelo loiro. Enquanto tirava as luvas e o gorro, para mim só existiram seus cabelos, amarrotados na cabeça, caindo em desordem ao longo do pescoço, encaracolados no suéter azul. Fui surpreendido pelo seu olhar travesso e aquele sorriso do primeiro encontro, e de imediato me encolhi, temendo o que ela ia fazer (o que talvez gostaria de já ter feito), para o qual eu não estava preparado.

Em vão lhe perguntei se ela havia chegado ao consultório. O trem nem chegou à estação, fui obrigada a dar meia volta, ela simplesmente disse. E assinalando meu caderno, que eu não tive tempo de esconder, perguntou:
-Esse é o livro?
Eu tinha um segundo para escolher. Ou estava escrevendo sobre um neurótico obsessivo, o que me deixava numa posição delicada, ou estava escrevendo sobre múmias, o que me deixava numa situação ruim. Ela escolheu:
-Era sobre o que, do Peru?
-Uma múmia. Você entendeu bem. - Senti-me ridículo por dizer que esse era o assunto e, ao mesmo tempo, tal qual um escritor, ofendido por seu esquecimento, ainda que fosse fingido, uma forma de provocação. Ridiculamente ofendido.
Ela percebeu e recuou. Ao fazer a pergunta, contudo, não tinha sorrido. Se alguma coisa, mostrou interesse, sincero ou não. Mudei o tom:
-Sobre uma múmia de mais de quinhentos anos, encontrada num vulcão dos Andes. - Tentei lembrar rápido do velho artigo de jornal. - Os incas faziam sacrifícios humanos aos deuses e ela, uma donzela, foi uma das eleitas. A encontrou, faz umas décadas, um explorador. Americano. De Illinois, se eu lembro bem. Quando o gelo fundiu devido à erupção de um vulcão vizinho.
-Então é verdade - disse Anne.
-O que.
-Que há uma múmia. - Sorriu de novo: - Que você está escrevendo sobre ela.
-Sim. Há uma múmia. Numa urna de cristal, a não sei quantos graus abaixo de zero. Em Arequipa. Você esteve no Peru?
-Não. Perto. Fiz uma viagem depois de formada. Estive no Brasil, Argentina, Chile.
-Onde você se formou? - eu disse, ainda querendo desviar a conversação.
-Aqui em Nova York - ela disse. - O que tem essa múmia? Qual é a história?
-Nada. Ela é linda, se você pode acreditar. Os incas sacrificavam as jovens mais bonitas. E está incrívelmente bem preservada. Com os cabelos, a pele, os olhos, as roupas, tudo.

O garçom trouxe à mesa uma omelete recheada de verduras. Anne temperou com meticulosidade a salada. Quando terminou, espetou uma azeitona, e olhando de novo para mim insistiu: queria saber da história.
-Esses são fatos que estão nos jornais - eu disse. - A história veio depois. Alguém gostou do relato que o explorador, ou antropólogo, esqueci o nome, escreveu sobre a expedição, e idealizou tudo o que leu sobre Juanita.
-A múmia.
-É. Conseguiu enxergar nas descrições uma mulher que não existia. Vai saber. Que existiu, só que quinhentos anos antes. Pode-se dizer que se apaixonou. Ou endoideceu, segundo a opinião mais sensata. - Adicionei: - E a minha.
Anne pousou o garfo no prato. Continuei:
-Desde esse momento, o homem só quis saber de Juanita. Você vê: uma história de amor impossível, maluco.

Anne, séria, por alguns minutos somente comeu, cabisbaixa. Eu, meio coibido, não soube o que mais dizer. Minha vizinha era realmente bela. Contra o desejo de observar seu rosto, virei-me repetidas vezes para os jovens nas outras mesas e a dona atrás do balcão, que lavava louça. Bela não como a jovem do patamar da escada, confiante, extrovertida, senão de uma beleza mais silenciosa, como devia sê-lo no consultório quando enfrentada com algum problema real. Com pequenas rugas entre as sobrancelhas e abaixo das pálpebras.

Queria lhe perguntar se também ouvia a música, de ritmo e melodia tão pouco familiares para mim, que, à noite, quando cansado de não ter escrito me deitava no colchão, incomodava-me e me impedia de ler. Havia auscultado as paredes e o chão e concluído que vinha do andar de cima. Mas achei que não era apropriado, e nesse momento não me importava tanto. Sem ter terminado a omelete, Anne fez menção de se levantar. Tinha um paciente aguardando, disse. De pé, pondo as luvas, pediu, antes de ir:
-Escreva essa história. Gostaria de ler.

Comi o que restou de sua omelete com outro café. Se eu duvidava de ter a capacidade, a força ou a vontade necessárias para escrever minha própria história, não ia escrever a de um homem apaixonado por uma múmia, num país que eu apenas conhecia, só para lhe dar satisfação.

Un president contra l'Alzheimer

Para quem, como minha amiga Gabriela, quiser aprender catalão, este é um documentário produzido pela televisão pública da Catalunha (TV3) sobre o Alzheimer, meio protagonizado por meu querido ex presidente da Catalunha e ex prefeito de Barcelona, Pasqual Maragall. O outro protagonista é um cidadão que também sofre a doença. O documentário é meio em catalão, meio em espanhol, dependendo de quem se expressa (naturalmente e sem pausa, passa de uma língua à outra). Tem momentos muito emotivos, é bem didático, e ganhou um prêmio de jornalismo em medicina.



Para ver em formato maior: http://www.tv3.cat/videos/680079

Sunday, November 15, 2009

Ave Maria, Ronaldo!

O grande amigo Ronaldo mandou, estes dias, sete (sete!) Ave Marias em mp3. Guardei todas elas na pasta "Ave Marias do Ronaldo". Junto com Bach e Schubert, são versões de Stevie Wonder, Raul Seixas ("Ave Maria da Rua"), Gonzagão ("Ave Maria Sertaneja"), Jorge Aragão (gravada na mesa de um botiquim), "Ave Maria Morena" (uma salsa) e os Scorpions ("Ave Maria do Morro").

Ele escreveu o seguinte: "Hoje eu vim andando, já que a Dona Márcia resolveu não dar aula, e no caminho eu escutei a bela e clássica música das 18h, a 'Ave Maria' de Schubert, com Stevie Wonder. Quando pequeno, nós (eu, meus irmãos e vizinhos), ao escutarmos ela, dávamos bença aos nossos pais e parávamos de brincar, pois nossos velhos diziam que na hora que esta música tocava não deveríamos pular, correr e nem gritar, só escutar... Ficou uma coisa sagrada, e até hoje é assim, mas só quando a escuto . Então aí pensei logo em baixar ela, só que achei tantas coisas legais...".

Friday, November 13, 2009

Capítulo 11 (novo rascunho)

A descoberta, na vizinhança, numa esquina deste bairro semi deserto e de brownstones depauperados (alguns possivelmente abandonadas, a julgar pelo mofo nos tijolos e pelas portas e janelas trancafiadas) de um impensável café, tem levantado meu ânimo e reduzido a frequência de meus deslocamentos a Manhattan. Este é o único lugar (com a exceção de a barbearia, que, de fora, parece-me um centro multi-uso para homens em idade de se aposentar) onde encontrei mais de cinco ou seis pessoas compartilhando um mesmo espaço. À esquerda da porta de entrada, um sofá e duas poltronas recriam uma pequena sala de estar. Numa dessas poltronas, de manhã, leio o jornal, com maior ou menor abandono segundo minha leve ou pesada consciência, que depende de ter escrito ou não. Do outro lado da porta, na parte que forma esquina, igualmente envidraçada e com luz de dia, há um aparador com dúzias de revistas e jornais locais e outras duas poltronas, às vezes aproveitadas por duplas que marcam suas reuniões de trabalho aqui. Duas grandes mesas de madeira, antigas, com seus bancos respectivos, encostam por um extremo à parede, adornada com arabescos que parecem de pão de ouro. Xícaras de papel pintadas por crianças, penduradas no teto por fios de lã, giram em cima delas. E no balcão estão à mostra, em bandejas de pé, bolos e cup cakes caseiros - deliciosos.

No corredor que leva ao banheiro há uma mesa menor, com um banco de concreto revestido de almofadas e encostos com motivos indianos. É neste cantinho, separado do acesso ao banheiro por uma prateleira repleta de livros e jogos de mesa, que eu escrevo, à luz de um abajur. Ou poderia escrever. Porque eu não consigo pensar, só consigo esperar meus pensamentos virem. Então, eu me distraio. Repasso o contorno de uma ou outra palavra (o nome do café, o título da música que toca no som), dou-lhe volume e perspectiva. Contemplo as xícaras suspensas no ar. Reparo nos fregueses: jovens que, havendo empilhado nos bancos suas peças de agasalho (casacos, gorros, luvas, cachecóis), digitam ou leem em seus MacBooks (todos iguais). Estão tão concentrados, e sentam tão perto uns dos outros, que poderiam se confundir de xícara de café, pegar a torrada da pessoa ao lado, pois nem quando dão uma mordida desviam a atenção do computador. Quem já está sentado dedica um aceno de cabeça cordial a quem chega e senta, mais um quando os olhares se encontram por acaso. Mas ninguém estabelece uma conversação com ninguém. São todos educados e discretos, trabalham em silêncio e sem interrupção. Gostaria de saber quem são, quais são seus trabalhos. Alguns têm idade para ter sido meus colegas de curso - poderiam estar lendo um original. Quando levava a família inteira ao restaurante (ir a restaurantes fazia parte de seu trabalho), meu pai costumava brincar de adivinhar, pela linguagem corporal, o futuro ou passado recentes dos casais, e gabava-se de nunca se enganar (quem iria comprovar). Agora posso dar-me ao luxo de imitá-lo, livre como estou dessa limitação: as pessoas não são mais sombras. Mas os jovens não falam, estão isolados. A dona do café, entretanto, no início lacônica, sorri para mim, e o garçom e a garçonete me reconhecem. Não se vestem como garçons: suas roupas são iguais às dos fregueses, folgadas, surradas; compradas, provavelmente, em algum brechô do próximo Williamsburg.



Minha irmã tentou me ajudar a abandonar a pergunta mais persistente - a mesma que levei comigo a Nova York. Sentados na areia da praia da Barceloneta, disse-me que construía minhas perguntas sobre certezas. Disse que a noite em que entrei no quarto de Lídia, em Menorca, o fiz por motivos que eu sabia. Fossem quais fossem esses motivos, não podia ter dúvidas ao respeito. Disse que, depois, com efeito, podia ter me perguntado qualquer coisa: se o que fiz foi correto ou incorreto, se tinha desculpa ou não, se agi de maneira egoísta ou como teria feito outra pessoa em meu lugar. Mas que aquilo que eu realmente fiz, aquilo que aconteceu, eu não podia não saber. Essa tarde fui tranquilo à academia. De noite jantei com amigos sem nenhuma pergunta a me incomodar, com a cabeça clara, conversando com eles. Esperando, simplesmente, a lembrança, aquele relâmpago de lucidez talvez me fizesse chorar pelos meses perdidos.

Mas antes da revelação aparecia, sempre, a pergunta. E eu cedia, fazia-me a pergunta uma, cinco, vinte vezes. Até que Lídia já não era minha amiga, até que já não era uma garota, nem um nome: só cinco letras levadas à força à minha mente, junto com as letras de outras palavras carentes também de sentido, zunindo dentro de mim.

Não podia falar em dúvidas, minha irmã tinha razão: não as tinha. Não podia duvidar do resultado de somar dois e dois; não podia duvidar de ter comido um croissant de manhã. Também não podia duvidar de que amava Lídia. Nesse caso, teria perdido o contato com a realidade. Mas podia perguntar-me. Qualquer um pode perguntar-se qualquer coisa, essa é uma das vias que conduzem à loucura.

Capítulo 10 (novo rascunho)

Quem esteve apaixonado alguma vez compreende sem dificuldade o amigo apaixonado. Mas como pode um amigo, mesmo um psicólogo, compreender a quem sofre uma neurose ou algum outro tipo de doença mental? Como pode fazer uma ideia do modo em que a mente da pessoa opera? Além da trilha, o caminho ou a estrada da saúde mental, existe um espaço infinito para perder-se. E se nem existem palavras para definir o estado em que os pensamentos fluem, como hão de existir para descrever esses outros lugares (cada um diferente, eu imagino) em que as mentes doentes se instalam? Longe de se resignar, e apesar de uma solidão de estremecer, o doente tateia, procura um caminho de retorno. Experimenta métodos, atitudes, terapias, fármacos. Até descobrir que, por alguma dessas vias, vai se reaproximando, pouco a pouco, da normalidade, do estado anterior. Os conselhos, sugestões ou empatia dos psicólogos, familiares ou amigos não lhe servem de ajuda substancial: esta é sempre aproximada, nascida do que eles são capazes de interpretar prestando atenção às explicações (comparações, metáforas: porque faltam as palavras) e preenchendo os espaços vazios com seus conhecimentos ou experiência. O doente percorre o caminho só, sem a certeza de que leve a bom porto (ao contrário: com o temor indizível de que o sofrimento não tenha fim, de que não haja saída) e sem dispor de maior confiança do que a própria.

Tuesday, November 10, 2009

Indignação, de Philip Roth

Estou chegando ao final de Indignação, o último romance (ou penúltimo, não sei, porque ele escreve sem parar) de Philip Roth. Foi uma recomendação do amigo Pedro. Eu estava com receio, não queria ler mais uma história parecida às de The Human Stain ou Everyman (não li nenhum dos romances anteriores, como Portnoy's Complaint), inevitavelmente protagonizada por um velho e amargurado professor universitário que fica com a jovem mais linda do campus - com uma ou várias cenas de sexo no escritório. Porém o Pedro me disse que não era o caso: o romance se passava em um campus, mas o narrador era um jovem estudante recém-chegado, que não se adaptava aos colegas e trocava três vezes de quarto em um mês; um pouco parecido, disse, com O apanhador no campo de centeio. Encontrei semelhanças, sim, com O apanhador..., e também com o Retrato do artista quando jovem, se bem que o protagonista de Indignação, Markus Messner, não é tão revoltado como Holden Caulfield (ou não tão profundamente revoltado), nem é um gênio como Stephen Dedalus: é "só" um "aluno nota 10" (ele usa essas palavras para se proteger).

O narrador-protagonista descreve tudo, em todo detalhe, com toda a complexidade, usando sempre as palavras exatas: o entorno (desde o açougue kosher do pai até o dormitório universitário), as relações, as emoções, as falas (há grandes diálogos no texto). Isso, que facilita a leitura, contradiz alguns teóricos da literatura, àqueles segundo os quais contar tudo seria ruim porque não deixaria espaço para o leitor pensar. Mas há muitas maneiras de fazer o leitor pensar. E, aqui, o leitor talvez não deva preencher espaços vazios na história, mas é levado a pensar, e muito, sobre o porquê dos fatos narrados poderem acontecer (acontecerem, de fato).

Há muito eu não lia um livro tão violento, de uma violência verbal, psicológica, soterrada, feita de chantagens, hipocrisias e também pura crueldade; de pais para filhos, de professores para alunos, de colegas para colegas; e também (sobre tudo?) com essa violência sem agente definido, a exercida pela sociedade, a "tradição", a "regra"*. Depois de ler um trecho determinado, já perto do final, tive que parar, sair da cama e fumar um cigarro; não pelo vício :), senão porque aquilo que estava acontecendo na história era duro demais. Romances como este fazem falta para mostrar vivamente (e, nisso, os livros de Salinger e Joyce são também grandiosos exemplos) a revolta contra a sociedade que a gente criou.

No meio da história, o narrador revela um fato importante. Essa é a única falha que até agora encontrei: é esquisito ter esse dado tão cedo. Mas, quem sabe, as últimas páginas dêem uma lógica a isso. Afinal de contas, trata-se do monstro Philip Roth.

E achei a tradução, de Jorio Dauster, muito boa. O português flui, nenhuma frase parece estranha ou calco do inglês.


*Um trechinho: (...) eu próprio havia sido tragado pela insipidez não apenas dos costumes da Universidade de Winesburg, mas da retidão que tiranizava minha vida, a retidão sufocante que, eu estava prestes a concluir, levara Olivia à loucura. Mamãe, não examine a família para conhecer a causa - examine o que o mundo convencional não considera permissível! Olhe para mim, tão pateticamente conformista ao chegar aqui a ponto de não poder confiar numa garota só porque ela chupou meu pau!




Ward Sutton

Monday, November 09, 2009

Capítulo 9 (novo rascunho)

J.-P. era daquelas que ficam caladas. Nesses momentos, eu ficava calado também. Quando o silêncio se prolongava, virando desagradável, ela afastava a vista o instante preciso para acender seu cigarro preto, reerguia a cabeça, e dava a primeira tragada com os olhinhos inquisidores e meio risonhos cravados em mim, levantando o queixo como a me perguntar: "Quê?". Então eu me recostava no sofá, apoiava uma perna sobre a outra, jogava a cabeça para trás e via, por entre as lâminas da persiana, de cabeça para baixo, as roupas estendidas nos varais, os toldos encardidos das sacadas, o pátio interior do quarteirão (um pátio interior grande, do Eixample barcelonês); ou fingia pôr minha atenção no único enfeite nas paredes da sala, a reprodução de um desenho de Picasso. Minha memória faz troça de mim: não pode ter sido um minotauro no ato de deflorar uma ninfa, é descabido. Não: era um rosto de mulher, feito de um traço só. Esboço, talvez, da Mulher de cabelo amarelo do Museu Guggenheim, com suas curvas ondulantes - impossíveis, de tão singelas - e suas cores cálidas e infantis.

Os silêncios me exasperavam, sobretudo quando eram aproveitados pela doutora para me perguntar sobre a infância. Se tive uma infância feliz. Se brigava com meus irmãos. Se tive amigos na escola. O que tinha a ver minha infância com o fato de eu estar abalado por não ter convidado expressamente um colega a ir ao teatro (ter dito, só: venha conosco, se estiver a fim), ou por ter dado tchau, mas não no tom apropriado, à mãe de uma amiga minha? O que tinha a ver minha infância com o fato de algum interruptor no cérebro ter sido desligado, ou ligado, de um dia para o outro, um ano atrás?

A maioria das vezes, porém, a obsessão pelo que eu tinha dito ou feito, a tal ou qual pessoa, nas horas ou os dias precedentes, a urgência de ter de saber se tinha dito ou feito bem, não lhe deixavam mais opção do que entrar no meu jogo. Então a conversa sobre o assunto concreto, a exposição do que estava me atormentando, a visão do fato sob uma nova luz, permitia-me me dar conta de como aquilo era absurdo, desfazia, com sorte, o motivo da obsessão. Era um dar-me conta instantâneo, uma realização imediata, um céu se abrir.

Chegado o final da sessão, J.-P. batia a mão na coxa e dizia, com voz pesarosa: "Temos que ir". Era só eu que ia. Se não tinha me desvencilhado totalmente da pergunta, saía mal dissimulando meu descontentamento. No caso contrário, ia embora aliviado, a mente vazia, totalmente grato à doutora - quase a idolatrando -, pulando os degraus de dois em dois. O habitual era que eu subisse apressado e ansioso pelo elevador, olhando, um a um, os números se acenderem até o sétimo andar, e descesse satisfeito pela escada, prolongando o momento, desejando chegar em casa e poder sentar à mesa, sorridente, falante, com meus pais e irmãos.

Mas era sempre só um alivio. O caminho mais direto para casa passava por uma rua mal iluminada, de calçada estreita, com apenas transeuntes e quase sem lojas, só um muro comprido de concreto, uma garagem, um túnel de lavagem e vários night clubs. Era habitualmente em algum ponto dessa rua que uma nova pergunta começava a se insinuar, sem que eu tivesse recursos para impedi-lo. A pergunta derivava, em ocasiões, do que eu vinha de resolver com J.-P., como se a doença também tivesse a capacidade de apresentá-las sob diferentes óticas. Por vezes era uma pergunta anterior, cuja resposta eu já tinha esquecido; o motivo de sua eliminação (em seu momento, diáfano) havendo perdido o seu contorno e valor.

Sunday, November 08, 2009

Capítulo 8 (novo rascunho)

J.-P. não possuía a beleza nem a juventude de minha vizinha Anne (que, nesses tempos, nem devia ser formada). Tinha olhos e nariz de coelho, a boca pequena e fina, com vincos no buço, os dentes e as unhas amarelados de tanto fumar. Comecei a visitá-la em janeiro de 97, um ano depois da aparição da doença, quando o medo do que estava me acontecendo pesou mais do que a vergonha de procurar essa ajuda. E o primeiro que fiz foi lhe pedir medicação.

Por um de meus cadernos, sei que foi após a leitura de um livro de Erich Fromm que tomei a decisão. Para Fromm, a neurose era a expressão de um conflito moral, e eu não tive dificuldade em associar o que estava fazendo ao que ele chamava de "ética autoritária" (e opunha à "ética humanista", a desejável). O temor da desaprovação e a necessidade da aprovação pelos outros eram em mim os motivos mais poderosos do juízo ético. Havia me tornado autoritaríssimo, criticíssimo, duríssimo comigo mesmo, e esses e outros sintomas me levaram a pensar que tinha uma neurose obsessiva. Soube que o caráter neurótico chegou a ser o foco da teoria e terapêutica psicanalíticas, e a doutora J.-P. se definia como psicóloga e psiquiatra "freudiana eclética". O termo neurótico obsessivo, porém, nunca saiu de seus lábios (o DSM IV não devia ser sua obra de referência: a bíblia da psiquiatria teria me encaixado no grupo dos indivíduos com TOC, tivesse eu um, dois, três ou todos os sintomas descritos, e sem considerar qualquer particularidade de caráter), e o fato de a doutora não batizar ou categorizar minha doença acredito que foi feliz.

Saturday, November 07, 2009

Capítulo 7 (novo rascunho)

A pergunta adquiria diferentes matizes. O que eu disse? O que eu quis dizer? O que eu sentia quando o disse? Resolvê-la era indispensável para me ver livre dela e começar a viver em Nova York. Mas era uma pergunta que eu não podia responder. Tinha a experiência acumulada de um sem fim de perguntas mais simples e ridículas. Para mim, nem sequer dois mais dois haviam sido quatro. Houve um tempo em que, para contar, comecei a reparar em qualquer coisa, em quatro pedras, por exemplo, em quatro lápis, em quatro árvores na rua. Só então "quatro" tinha algum significado. Ou me agarrava os dedos. Com vinte e tantos anos, voltei a contar com os dedos. (Ocasionalmente, a realidade relativizava meu mal. Em casa de Lídia, certa tarde de início de verão, tomando café sob os pinheiros do quintal, vários amigos se puseram a contar com os dedos os dias que faltavam para sair de férias. Para eles bastava, porém, fazê-lo uma vez.) Eu havia magoado muito Lídia e precisava averiguar se o tinha feito sabendo-o. Qualquer amante escrupuloso poderia se fazer tal pergunta, cansei-me de dizer a J.-P.: as perguntas são agora de uma outra categoria, seu objeto é exclusivamente Lídia, a pessoa que mais amo no mundo.

Capítulo 6 (novo rascunho)

Reuni coragem e fui a Union Square. Andei pela calçada sul da rua 14, passei pela residência universitária, de cuja larga e longa marquise retiraram os painéis de metacrilato, deixando só a estrutura (embaixo dessa marquise, protegido da chuva, não fumei e conversei brevemente com alguém, alguma vez?), atravessei até a praça. O gramado está seco, queimado pela neve e o sol, e os galhos nus das árvores, como cabelos encrespados, não ocultam as fileiras de prédios baixos, não escondem a cidade. Sinais de proibição, relativos a cachorros, comida e esportes, com a praça vazia e em silêncio, parecem uma triste brincadeira. As folhas caídas têm sido varridas, e as que restam formam círculos perfeitos aos pés de cada tronco, anéis marrons. Não sinto nada. Agora que estou inteiramente aqui, não sinto nada. Quão absurdo, querer rever a praça daquele verão.

Desta praça liguei para o meu pai. Sentado de pernas cruzadas, deixando o corpo cair até quase tocar com a testa na grama. Sem nada ver ou ouvir. Como se os jovens estudantes formando rodas, os velhos apertados uns aos outros nos bancos, os mendigos e os bêbados com bancos só para si, sem ninguém que os dividisse com eles, a música e a mistura de gritos e murmúrios, estivessem, viessem de um lugar distante. As lembranças podem ser tão mais completas do que os próprios fatos vividos! Era esse o meu medo destes dias? A inutilidade pressentida de querer voltar aqui? Meu pai intentava me resgatar. À menor chance, pedia-me que lhe contasse sobre o curso, sobre os colegas; e, sendo as minhas respostas vagas, interessava-se pelo que havia ao meu redor. Com curiosidade sincera, mas ciente, também, que era isso que eu precisava. Dizia-me que ouvia música de violões. Como é a praça?, perguntava. O que você está fazendo para se divertir? Impelia-me a fazer um esforço (meu pai: aplicando, sem sabê-lo, uma "técnica de distração"). Sem sucesso, porque tudo o que eu queria era sua ajuda para resolver a pergunta que, havia mais de um ano, não me deixava em paz.

O Boxeador, de Leonardo Wittmann

Esta é a curta-metragem do colega de Oficina de Escrita Criativa e amigo Leonardo Wittmann. Eu adorei. Não digo isso por ele ser meu amigo. :) É uma história singela e humana, contada com delicadeza. Como eu gosto.

Friday, November 06, 2009

Traduccions de Brasil 60 (A casa é sua, de Arnaldo Antunes e Ortinho)

Saudades do Ronaldo e da Rose, cujas "casas" estão sempre abertas. (E que amam o Arnaldo tanto quanto eu.)



La casa es tuya

No me faltan sillas
No me falta sofá
Sólo me faltas tú sentada en la sala
Sólo me falta verte llegar

No me faltan paredes
Y en ellas la puerta para que puedas entrar
No me faltan alfombras
Para que tus pies las puedan pisar

No me falta cama
Sólo me falta que te vengas a echar
No me falta el sol de mañana
Sólo me falta verte despertar

Que las ventanas se abran para mí
Y el viento juegue en el patio de atrás
Acariciando las flores del jardín
Meciendo la ropa a secar

La casa es tuya
Por qué no vienes ahora?
Hasta el techo está de cabeza baja porque te añora

La casa es tuya
Por qué no corres?
Ni el clavo aguanta ya el peso de los relojes

No me falta baño, cuarto,
lámpara, sala de estar,
No me falta cocina
Sólo me falta oír el timbre tocar

No me falta un perro
Ululando porque tú no estás
Parece que esté pidiendo socorro
Como todo aquí en este lugar

No me falta casa
Sólo falta que sea un hogar
No me falta el tiempo que pasa
Pero ya no puedo esperar

Para que los pájaros vuelvan a cantar
Y la nube dibuje un corazón atravesado
Para el suelo volver a su lugar
Y la lluvia repiquetear en el tejado

La casa es tuya
Por qué no vienes ahora?
Hasta el techo está de cabeza baja porque te añora

La casa es tuya
Por qué no corres?
Ni el clavo aguanta ya el peso de los relojes

Capítulo 5 (novo rascunho)

Incrédula. E a capa de livro colada na porta do banheiro, debaixo do mapa do metrô do inquilino anterior? O que ela pensaria se entrasse e a visse? Para disfarçar o desencanto, eu zombaria: 30 mil cópias vendidas. To great critical acclaim. Porém, é só uma capa, sem sequer nome de autor. A imagem de um vulcão em sombra, ao cair do dia, com letras brancas sobreimpressas num céu cor azul anil: Under the Peruvian Snow. De todas as lembranças do curso de edição, só esta não esteve engavetada por anos. Não é uma capa especialmente bonita, mas tem um significado especial: é a prova de um pequeno e improvável sucesso, e de um trabalho que eu não fiz em solidão. Esqueci o nome e o rosto da garota. No grupo, só ela sabia usar o Quark, e ofereceu-se gentilmente para desenhá-las todas. (Lembro, entretanto, de tentar expressar a maior gratidão quando a recebi de suas mãos, num canto perdido do subsolo labiríntico da maior biblioteca do campus.) Anne observaria a capa, inclinando a cabeça para o lado, brincando de ajeitar o cabelo, leria o título e talvez diria: Então você não deveria estar em Lima?

Capítulo 4 (novo rascunho)

No ano 2000 não pisei neste bairro, nem em qualquer ponto do Brooklyn. Minha vida transcorreu entre os limites marcados pelas ruas 14 e 4, a Terceira avenida e University Place. Agora moro em Bedford-Stuyvesant, num trecho da rua Bedford onde somente há uma loja de conveniência, uma barbearia e um lúgubre take away chinês. A três quarteirões de distância de meu apartamento há o metrô, e às vezes vejo, à minha frente, de salto alto apesar da neve, minha vizinha, a única que até hoje conheci. É psicóloga. De manhã trabalha em um consultório de Manhattan e de tarde recebe pacientes em casa. Foi ela quem se apresentou. Eu ia carregado de sacolas do supermercado. Antes de conseguir abrir a porta, ouvi-a descer pela escada e se deter no patamar. Seu nome é Anne, ou Anna (primeiro disse Anna, logo se corrigiu). Quis saber quem eu era, o que eu fazia. Escrevo, eu disse. Ela inquiriu sobre o quê. Hesitei. Sobre uma múmia peruana, ocorreu-me dizer. Pelo seu olhar risonho, entendi que não acreditou. Deu-me tchauzinho com a mão, e terminando de amarrar o cinto de um casacão rosa, sumiu escada abaixo. Ainda disse, num tom de voz mais alto: Você não me parece um escritor!

Capítulo 3 (novo rascunho)

Mas por enquanto espero. Evito as ruas e avenidas por onde andei em 2000. Sempre ao norte de Union Square, caminho sem rumo, depressa por causa do frio, ouvindo o náilon do casaco crepitar, como se revestido por uma película de neve. Quando não aguento mais, sentindo pontadas na testa e nas mãos, enfio-me em qualquer lugar: uma loja de departamentos, o vestíbulo de um prédio de escritórios, a entrada de um museu. A Biblioteca Pública serve bem a esse propósito. Na sala de leitura, abro minha pasta, pego o livro e a revista que, junto com um caderno, levo sempre comigo e, sem vontade de ler ou escrever, observo os estudantes, as pessoas que enchem o salão, as altas prateleiras, o teto esculpido em madeira. Perto do prédio da biblioteca, na loja de uma rede de fast food, tomo uma sopa quente, servida em copo de papel.

Reparo em certos prédios como se fosse a primeira vez. Respirando através do cachecol, recuo até obter uma visão melhor. Olho as vitrines das lojas do térreo, deslizo o olhar pelos andares da parte central; subo e me detenho em andares de perímetro menor, mais adornados, com elegantes frisos e vãos de janelas; até chegar aos últimos, com suas gárgulas e seus pináculos, que, entrefechando os olhos, enxergo recortados no céu. Fantasio sobre a identidade dos moradores dessas torres medievais. Imagino carpetes velhos e gastos, assoalhos rangendo, corredores sombrios conectando elevadores antigos e novos.


Nessa postura não reconheço o jovem com um objetivo específico para estar aqui. Reconheço a atitude que, outros dias, tem me levado ao Museu do Brooklyn, eu encantado diante das máscaras africanas e dos totens do alto saguão, seccionados longitudinalmente, remontados e segurados com cercos de metal; ou, no Museu de Arte Folclórica, diante das superfícies lisas, vermelhas, das saias das meninas pintadas por um artista amador. Um estar sem estar, porém um estar sem estar prazeroso. Como se meus sentidos entrassem em contato com os objetos, de maneira imediata. Terá meu pensamento - imagino, sorrindo - se espantado com meu grande ressentimento e ido além, retrocedido demais?

Na mala trouxe livros e pilhas de papéis; fotografias, impressões de e-mails; cadernetas, cartas, caixinhas que nem sei o que contêm, que em Barcelona não abri. Arrumei os livros na estante baixa em frente ao sofá; o resto ficou tudo em cima da única mesa, na cozinha. Talvez nada disso venha a ser de utilidade. Algumas dessas coisas poderiam inclusive me atrapalhar. Mas é pouca a confiança na recordação dos fatos, ou na generosidade da mente para me presentear com pensamentos, e o material guardado de nove anos atrás, junto à possibilidade de revisitar certos lugares, parecem-me bastante preciosos, algo a que vou ter de recorrer.

Thursday, November 05, 2009

Tadinhos futebolistas

A polêmica do aumento do IR na Espanha chegou ao Brasil. Como informa a Folha de S. Paulo, os clubes de futebol vão se reunir para decidir se fazer uma greve. Motivo? Os jogadores com ganhos superiores a € 600.000 anuais (R$ 1.500.000) pagarão 43% em vez do 24% atual. Agora: qual é a taxação na Itália para ganhos anuais a partir de € 75.000 ("só" 75.000)? 43 %. E na Alemanha, para quem ganha anualmente € 250.000? 45%. Parece que a maioria de clubes espanhóis (espero que meu RCD Espanyol de Barcelona não esteja metido nessa) estão preocupados porque, caso a medida saia adiante, sua Liga deixará de ser "A Liga das Estrelas", ou "A melhor Liga do mundo". O que não deixa de ser uma piada: segundo Rodrigo Bueno, também da Folha, um campeonato em que só dois times têm opções de ganhar (podem apostar, têm 50% de chances de ganhar uma graninha) estaria mais bem para o Pior campeonato do mundo. A ministra da Economia disse que "uma greve seria uma medida que nenhum contribuinte entenderia". Eu digo mais: proponho que a greve seja dos assistentes aos estádios, a maioria dos quais ganham menos de € 1.000 por mês. Referindo-se à medida, o presidente do Bar$elona disse, citado na Folha: "Isso pode criar um prejuízo na capacidade competitiva de nosso futebol". E eu digo ao J. Laporta: Que et donin pel cul.*

*Em catalão. Assim, caso ele, narcisista entre narcisistas, se procure no Google, poderá encontrar mais um insulto a sua pessoa.


PS: A aberração, que, desde que cheguei ao Brasil, considero que é o IR em vigor no país seria o motivo de um outro post que tenho preguiça de escrever. Mas só uma mudança corajosa do sistema fiscal (algo tão óbvio como que os ricos paguem mais) faria com que o abismo social, a maior vergonha nacional, diminuísse um pouco.

Capítulo 2 (novo rascunho)

Desde que cheguei, fui duas vezes ver os pinguins do zoo do Central Park. Que prazer enorme, ficar só olhando! O maior e mais gordo parece uma estátua de pinguim, imóvel sobre uma rocha, sozinho, alheio a tudo. Outros se projetam fora d'água em pulinhos totalmente verticais - mecânicos, dir-se-ia. Muitos nadam, disparados, lançados como setas, deixando trás de si longos rastros de bolhas. Gosto de passar o tempo aqui, na escuridão. Ouço os comentários das crianças: "Mas que pinguim bobo!"; "Por que, filha?". Um homem de capa e botas de chuva caminha diante do céu pintado e joga sardinhas na água e nas rochas. "Está deixando que roubem seu peixe!"; "Não se preocupe"; "Mas ele vai morrer!". Sento-me, levanto, ajoelho-me no feltro preto que cobre chão e paredes, com a face colada no vidro que separa este espaço quente da Antártida encapsulada. Vejo os ventres finos e roliços das aves, que embaixo d'água parecem não ter plumagem.

Outros dias, a consciência de ter de escrever é maior. Então, nem ler o jornal eu faço tranquilo. Com um gesto de desgosto, atiro-o na primeira lixeira que encontro, às vezes do lado da banca onde o comprei. Como se sua leitura fosse um verdadeiro empecilho. Depois de tantos anos em que só tive paz de manhã, tomando o café e lendo o jornal.

Capítulo 1 (novo rascunho)

[Sumiu.]

Triste isso

Tomei um café expresso carioca de R$ 2. Só tinha uma nota de R$ 50. A mulher usou a calculadora. Triste isso.

Tuesday, November 03, 2009

Capítulo 0 (rascunho)

Agora imaginem uma cidade sitiada, bombardeada dia e noite. Inclusive nesse cenário - e em determinadas circunstâncias - uma pessoa pode não ser capaz de esquecer suas preocupações mais banais. E, no entanto, a gente foge à menor oportunidade. Abandona sua casa, deixa seu trabalho, carrega uma leve bagagem e começa a caminhar. São momentos em que andar sem destino se apresenta como única opção.

Homens desprezados atravessam oceanos para se afastar da amada, só para descobrir, ao fim de uma vida tentando, que não conseguiram esquecê-la. Mas o amor não é o único motivo. Há uma infinidade de situações que exigem lentas transformações da alma, e a gente não sabe sempre o que fazer durante a espera.

Reparem nos olhos opacos de Alícia, que fuma sentada nos degraus da escada, sozinha em frente à porta do escritório onde trabalha. Reparem em Xavier, que percorre lentamente as ruas da cidade, chega até o cais, e fuma sentado num dos bancos, com o olhar perdido entre o velame. Ou em Manuel, que todos os dias, em qualquer parque, em qualquer café, lê (um acúmulo de palavras sobre a inadequação das palavras, que ora não entende, ora entende muito bem). Não estão sonhando. Não pensam no relatório a meio terminar, não estão à procura de nenhum horizonte melhor. Têm coisas mais importantes a resolver. Estão à espera.

A vida de quem espera é uma vida em suspenso, uma vida cujos eventos cotidianos são percebidos como um longo entreato; uma série interminável de encontros e desencontros não vividos. É a vida de Penélope e Cio-Cio-San. É a vida de Ana, que de tanto esperar se tornou uma rocha de sal. Sua espera e sua esperança eram as mesmas. Esperaram o retorno do amado à beira do mar. Aquilo que tiveram e perderam. Mas o amor não é o único motivo. Há coisas que se perdem, sem as quais não é possível viver. Coisas que se perdem mas podem se recuperar. Perdas que não aniquilam a esperança, que obrigam a lutar quando já não restam forças.