Wednesday, December 09, 2009

Capítulo 18 (novo rascunho)

Foi graças ao que chamei de meu pequeno, improvável sucesso que conheci Kate. Assim como Anne, ela gostou da história do homem e a múmia. Na metade do curso (terminada a parte dedicada à edição de livros e antes de iniciada a dedicada à edição de revistas), na lanchonete onde minhas colegas e eu comemorávamos o fim do trabalho (elas comemoravam, eu me sentia aliviado, liberado por ter falado em público e me saído mais ou menos bem), veio me dar parabéns, elogiar o projeto de livro que eu acabava de apresentar. Seus foram os elogios que mais me surpreenderam e deixaram lisonjeado - mais do que os do diretor e os do velho Ernest, que tanto fariam por mim, depois, com o intuito de que eu encontrasse emprego na cidade. Foram os de Kate. Não por ela ser tão bonita, seus olhos cálidos, cor de avelã, o rosto e o sorriso largos, o cabelo curto e preto (como o de Taís); ou tão inteligente; ou por estar vencendo sua prudência e proverbial timidez (tudo isso eu iria perceber mais tarde, em nossos longas caminhadas e conversas nos cafés), e sim por serem os mais insuspeitados, por virem de alguém em quem eu não tinha reparado, uma pessoa com quem, nesse instante me dei conta, eu deveria ter algo em comum.

Difícil dizer como foi a apresentação. Nos primeiros minutos, minha voz tremeu, e eu só olhava meus papéis. Quando o tremor na voz passou, aproveitei alguma pausa na fala para, por meio segundo, levantar a vista do atril. Enxergava as pessoas sentadas na primeira fila: o diretor, os coordenadores. O resto da sala estava escura, os colegas disseminados pelas fileiras de bancos, até o fundo, agrupados por editoras fictícias (a nossa foi a última a se apresentar). Do início ao fim, falei sem pensar, tratando unicamente de verbalizar as anotações, sem esquecer nada e no melhor inglês de que fui capaz. Minhas colegas estavam de pé no estrado, à esquerda, e entre elas e eu, numa telona, foram se alternando a projeção da capa do livro e alguns outros slides com dados sobre produção.

Tempo depois, perguntaria a Kate por que só veio falar comigo então. Queria saber se, até aquele dia, eu tinha lhe parecido um aluno medíocre, ou vulgar. Não, ela disse: se alguma coisa, você me pareceu alguém altaneiro, desdenhoso dos demais (não lembro da palavra exata que ela usou). Maravilha. O fato de eu estar sempre tão calado, fumando, evitando os colegas quando se reuniam para ir almoçar (porque eu não me sentia em condições de manter, ao redor de uma mesa, uma conversação), foi interpretado por ela como sinal de arrogância. Eu!, eu que talvez não em Nova York, porque há vários anos carregava a doença e já não me importava com o que os outros pensassem, mas sim antes, fiz tanto para que ninguém percebesse o que acontecia?! Kate me dava vontade de rir. Então a neurose não transparecia, não se mostrava? Era para cada um o que bem entender?

Eu sabia das condições em que preparei e escrevi a apresentação. Por isso os elogios não me serviam, só me deixavam perplexo. Nas semanas anteriores, tinha ido com frequência à sala de computadores mais próxima da residência, ciente de que não conseguiria trabalhar. Entrava e, passados cinco minutos, saía para fumar. Entrava e saía de novo, incapaz de escrever uma linha. O que fazia era ler e-mails e tentar pesquisar. Lia páginas na Internet (resenhas, por exemplo, deixadas por leitores na livraria Amazon) como um autômato, impossibilitado de conectar informações, de articular nada novo a partir delas. Imprimia algumas páginas e, sem ânimo para conversar com os colegas que encontrava ali (esforçava-me, apenas, para sorrir para eles, ou os cumprimentava com um inclinar de cabeça), saía ao pórtico do prédio, desejando que não aparecesse ninguém mais, pois só desejava fumar, conseguir que a pergunta me deixasse momentaneamente tranquilo, sem ter de falar sobre nada, de explicar por que estava com esses olhos e essa cara.

Às vezes aparecia o bom e velho Ernest, colega de curso que, quase em idade de se aposentar, queria abrir uma pequena editora em sua livraria de Indiana. Gordo, sempre com a camisa por fora da calça, de cabelo branco amarelado e bochechas e nariz sanguíneos, de irlandês, Ernest fumava e conversava comigo. Mas ninguém ia à sala de computadores, nessas horas do fim da tarde, ou da noite, a não ser para trabalhar, e nossas conversas eram breves. Ele entrava e eu ficava. Acendia um outro cigarro e dava uns passos pela calçada; voltava, encostava numa coluna, os pés cruzados, olhando para o outro lado da avenida. O sol, menos inclemente, suavizava as fachadas, deixava prédios em sombra e prédios em luz, fazia visíveis as partículas de poluição no ar, que criavam uma abóbada de um lado ao outro, por cima dos carros.

Recentemente li as memórias de uma pessoa com múltiplas fobias, músico de profissão. Quando, em sua vida - ele contava -, encontrava-se face a uma situação de risco ou perigo real (sem importar se ele estava num espaço pequeno e fechado, numa estrada em campo aberto, num local lotado de desconhecidos), todas suas fobias desapareciam de imediato; e, nesse lapso de tempo, como qualquer pessoa, reagia, voltava ao normal. Não é o caso do neurótico - ou não foi o meu. Lembro de, certa vez, voltando para casa com Lídia, ter sido assaltado, receber um soco na cara e, de caminho ao hospital e enquanto o médico costurava minha sobrancelha, continuar analisando se o que na hora da janta eu tinha dito a uma amiga estava certo ou errado - sem reagir nem ser capaz de tentar acalmar minha namorada. Na apresentação, no entanto, a neurose talvez tenha me ajudado. Porque o pensamento obsessivo embotava minha capacidade de sentir, me emocionar, e ele esteve lá comigo, no estrado, ainda que encolhido, recolhido num canto. Isso, naquela circunstância, para alguém tímido como eu, pôde ter sido bom. Impediu que me exprimisse melhor, mas, ao mesmo tempo, imunizou-me contra a pressão e a vergonha que, de outro modo, sem dúvida teria sentido ao falar ante aquela plateia.

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