Monday, December 14, 2009

Capítulo 19 (novo rascunho)

Anne, no som tocou "Satellite of Love" (baixinho, como sempre, para não incomodar os jovens que trabalham) e você ainda não veio. Terminei de comer uma omelete recheada, menos cheirosa e saborosa do que a que você comeu. Li o jornal do princípio ao fim. Passei do meu limite de refills de café e agora vou embora. Mas um dia terei a coragem de bater à sua porta e convidá-la a passear no Prospect Park. Se o tempo estiver ruim, poderíamos entrar no museu. Têm uma bonita coleção de máscaras africanas, lá.

É uma lástima, porém, pois hoje eu estava pronto, preparado para lhe contar o pouco que eu soube desse homem do Peru. Quem sabe tanto faz: é uma história trágica, não é conversa de sábado no parque, nem sei se você ia gostar. Não sei nada de você, só que é linda. E que à noite escuta essa música melodiosa e triste. Porque é você, não há ninguém mais morando nos apartamentos do andar acima do meu.

Alberto R. é seu nome. Ele era camponês numa aldeia da província de Ayacucho, no Peru. Cultivava batatas que ia vender no mercado da capital: papas de vários tipos, formas e tamanhos; há papas de casca roxa, amarela, azul, nesse país, acredita? Deve ter sido durante uma dessas viagens. Quinze pessoas, a metade dos habitantes da aldeia, entre elas a mulher e a única filha de Alberto, foram assassinadas num ataque do Sendero Luminoso. Supostamente, teriam se negado a colaborar com os guerrilheiros. Foi no final da década de 60, quando os ataques indiscriminados eram comuns, tanto da guerrilha quanto do exército e dos paramilitares que diziam combatê-la. Alberto, que tinha pouco mais de vinte anos, ficou sem nada. Vendeu sua pequena propriedade e mudou-se a Ayacucho.

Dos seguintes trinta anos de sua vida não há notícia. Mas parte do relatório policial está na Internet, permite reconstruir o que lhe aconteceu em 1996. Ao que parece, morou por uns meses num quarto de pensão em Arequipa, 650 km ao sul de onde nasceu. No quarto, a polícia encontrou uma pilha de livros, só livros, não havia roupas sequer. Livros sobre os incas e sobre culturas andinas pré-incaicas. Também de astronomia. Junto com eles, algumas cadernetas, com notas em letra grande, porém difícil de ler. Alberto não deve ter tido uma formação escolar, quem fez o relatório zomba de sua escrita, qualifica-a de "típica de una chica de catorce años sin instrucción". Poderiam conter um pequeno tesouro, essas cadernetas. A única nota transcrita é reveladora, diz assim: "Los seres humanos son unas personas pésimas".

Alberto entrou no museu armado com um martelo. Essa frase é esquisita, "armado con un martillo". Um martelo não é, propriamente, uma arma, e tal inexatidão surpreende, sobretudo num relatório oficial. Passou rápido pelas quatro primeiras salas das cinco que o museu tem, onde estão expostos objetos cerimoniais de ouro, prata e cobre, e estatuetas em argila e metal, e entrou na quinta, reservada a Juanita. Sem nem olhar para ela, ao contrário, segundo o relatório a imagem é a de um homem cabisbaixo (provavelmente ele esteve lá outras vezes, disso não há registro, as fitas se reutilizavam), tirou o martelo do bolso e golpeou com força o cristal, na altura dos pés da múmia. O cristal só rachou, e o segurança chegou na hora, um instante antes que Alberto golpeasse a urna pela segunda vez: derrubou-o, imobilizou-o no chão.

Juanita não sofreu nenhum dano. Por um tempo, foi retirada da sala, substituída por Sarita, tão antiga quanto ela, porém bem menos conservada. Hoje em dia, Juanita continua lá, em sua eternizada posição semideitada, as costas inclinadas para frente, os joelhos dobrados, os braços cruzados sobre o peito. Com os cabelos longos terminados numa fina trança e uma fratura de cinco centímetros na parte posterior do crânio, imperceptível ao olhar. (Ressonâncias magnéticas determinaram que a jovem morreu assim, com um golpe desferido de trás com algum tipo de bastão.) Com seu manto cerimonial, de cor vermelho e branco, seus brincos e pingentes e seus sapatos de pele.

2 comments:

Leo Wittmann said...

Roger,

o romance está cada vez melhor! Quero destacar que gostei muito do capítulo 17, principalmente da descrição da Kate!

Queria, também, dar opiniões mais profundas, mas para isso ainda preciso reler alguns trechos.

Parabéns!!!!

Roger said...

Oi Leo!

Obrigadão! Tu sabe como saber disso (que as pessoas gostam) ajuda! :)

Opiniões "mais profundas"... eu já vou te pedir, quando tudo esteja mais adiantado! ;)

Amanhã te escrevo, queria fazê-lo mesmo, antes de viajar pra passar as férias em BCN.

Abraço!