Monday, November 29, 2010

Seymour, An Introduction (uma releitura apaixonada)

Meu irmão Oriol prometeu um e-mail irado que eu, assim como o Sérgio e outros amigos, estávamos esperando, mas ao que parece ele cansou de se irritar (acho que está canalizando sua raiva através do Emerson). "Já não vale a pena, não quero gastar palavras. Não vou falar da visita do papa a Barcelona, esse homem se afunda sozinho, não precisa da minha ajuda. [Eu queria botar no blog algum vídeo da recepção que gays e lésbicas lhe deram na Catedral, mas não achei nenhum o bastante forte.] Nem da vitória, ontem, de CiU. Os catalães são loucos. [A direita nacionalista catalã voltou ontem ao poder. Mas não somos loucos. Perto da metade da população não votou, eles vão governar com o apoio de dois em cada dez catalães.] Nem da loucura instalada neste país pelo estúpido jogo Bar$a-Madri$ de hoje. Nem de outras mediocridades que nos invadem." Em vez disso, ele escreveu um e-mail apaixonado, fruto da releitura de Seymour, An Introduction. Vou traduzi-lo aqui, a seguir, desta vez sem censura (parece que também cansou de usar palavrão), só com um pouquinho de edição. :)


Recuperei a alegria de ler graças ao mesmo autor que, em certo modo, despertou-me um prazer superior pela literatura, na minha idade pré-adulta: o amigo J. D. Salinger. Sempre gostei de ler, inclusive quando criança (os livros do "Barco à Vapor"), mas foi com The Catcher In the Rye que dei um passo além, como o noviço que, depois de um tempo no mosteiro, começa a enxergar que há outros caminhos, superiores aos que ele conhece ou pode imaginar.

Aconteceu que, diante do deserto do panorama literário atual, um editor inteligente, ou ao menos bem intencionado, preferiu, antes de atirar na própria cabeça, reeditar a obra de Salinger em espanhol, e que apesar de tê-la lido, não resisti e comprei Raise High the Roof Beam, Carpenters and Seymour, An Introduction, à principio para que o editor bem intencionado recebesse a mensagem de que não tudo está perdido e seu esforço não foi em vão. Tinha lido o livro em inglês, e a verdade é que nunca tive a certeza de tê-lo entendido bem. Posso dizer que não, não o tinha entendido nem curtido totalmente, e agora sei por quê.

A primeira parte do livro, Raise high..., é brilhante, o melhor que eu li em mais de um ano, ou dois, ou três; uma demonstração tão esmagadora de talento literário que deveria bastar para que muitos escritores largassem a caneta e se dedicassem ao estudo da vida dos caracóis. Mas a segunda parte... Ah, irmão! A segunda parte, Seymour..., é talvez um dos textos mais interessantes e perturbadores com que me deparei.

Ler Seymour... é se encontrar face à face com alguém que não só demonstra uma inteligência abismal, quanto, ao mesmo tempo, fala isso na nossa cara, brinca conosco, nos faz pensar, seduz, nos leva por onde quer e, no fim, nos deixa mais burros do que já éramos. Sem nos explicar nada, mas dizendo tudo. Salinger consegue isso simplesmente (como diz o título) apresentando-nos Seymour, um gênio, uma pessoa que nem fazemos ideia de como é quando terminamos de ler, mas que, esta é a maravilha, entendemos.

Se eu fosse um Salinger seria fácil, mas sou bem mais burro, e não sei dizer como ele consegue escrever 100 páginas sem explicar nada (as universidades estão cheias de alunos que fazem a mesma coisa, e as livrarias cheias de livros, mas não é isso o que Salinger faz) e ao mesmo tempo explicar tudo. O texto é tão inteligente que, para nos ajudar, Salinger usa, como narrador, um irmão supostamente bobo de Seymour (que não é bobo, não). Ele brinca com isso, brinca tão bem que, por momentos, achamos que está zombando de nós. Mas é exatamente assim que ele nos pega, e nos vira e revira o pensamento, tantas vezes que ficamos perdidos e entregues, presos, sem poder parar de ler nem para dormir.

Nem Salinger, Seymour ou o narrador são, em modo algum, arrogantes ou espessos; ao contrário, são transparentemente inteligentes e inclusive bons (de bondade). Esforçam-se para se comunicar, cientes de estar num outro nível (isso não é aparente no texto, está no fundo), e nós ficamos admirados e intrigados não pelo que contam, senão porque somos capazes de entrever que ali atrás há uma inteligência superior, limpa e cristalina, que não conseguimos, mas gostaríamos de entender.

Como eu diria... É como a sensação que as criancinhas têm quando vêem seus pais fazerem coisas "mágicas" que elas não têm como entender (cozinhar, dirigir, saber onde está tudo, conhecer as ruas da cidade,...). Acho que é isso o que eu senti: um misto de admiração e mágica, surpresa e fascinação, quase um delírio. Ah!, e o para mim mais engraçado. O narrador, em determinado momento, nos diz que Seymour conhece o Tao, que tem conceitos zen, que segue o caminho do oriente. Mesmo isso ele conta de uma maneira tão clara que parece o mais normal, o mais terrenal e menos espiritual do mundo.

Talvez esteja flipando demais. Mas no dia seguinte de terminar a leitura comprei Franny and Zooey, que também só tinha lido em inglês, e Nine Stories, porque precisava ler de novo o conto do peixe-banana, o suicídio do grande Seymour, chegar ao fim do que tinha começado. The Catcher In the Rye é uma obra-mestra, mas Seymour, An Introduction é a chave para entender por que Salinger, esse gênio, se retirou do mundo.

Friday, November 26, 2010

La ira del filósofo, de Eduardo Parra Ramírez

Queria escrever sobre este livro porque gostei e o terminei de ler. Antes dele, deixei alguns pela metade, cansado. Como O grande, obra póstuma de Juan José Saer, um dos maiores escritores argentinos (diferente de outros, esse romance é um exercício de estilo, um tour de force, o mais parecido à pintura hiperrealista que eu vi em literatura); ou Leviatán, de Philip Hoare, livro de não ficção sobre baleias e literatura sobre baleias, que fez muito sucesso na Inglaterra; ou o número da revista/livro Granta dedicado aos melhores narradores jovens em espanhol. Não terminei de ler nenhum dos três. O cansaço poderia ser atribuível a mim, mais do que aos livros, mas só relativamente, pois antes li Freedom, com enorme prazer, e agora este, La ira del filósofo, curtindo-o do princípio ao fim. Freedom é uma obra-mestra, um desses clássicos instantâneos (um amigo da faculdade dizia que não se escreviam mais clássicos; acho que esse é um); La ira del filósofo, não. É "só" um baita primeiro romance, do escritor Eduardo Parra Ramírez, nascido em 1970 em Ciudad de México.

Foi refrescante, ler este livro. Semanas atrás, estava pensando em voltar a ler só os mortos, como meu irmão Oriol me aconselhou (ele sempre foi leitor, principalmente, de literatura contemporânea, mas agora, também cansado de novidades ruins, tomou a decisão drástica de ler Os miseráveis). Eu estava pensando nisso, sobretudo (além de porque li, nos últimos anos, alguns primeiros romances brasileiros, e outros nem tão primeiros, que me deixaram frio), pelo efeito que me causou esse número da Granta. Tratando-se de uma seleção de autores de sei lá quantos países (em quantos países se fala espanhol?), a revista só deveria, achei, só poderia, incluir textos bons, ou muito bons. Pensei: terá narrações realistas e narrações experimentais, vozes novas, etc. Pois bem, não sei onde tinham a cabeça os editores (nem sei o que devem estar pensando os ingleses, já que a revista saiu simultaneamente na Inglaterra, em tradução), mas parece que deixaram a tarefa (a sua tarefa) de seleção para o leitor, não separaram o joio do trigo. Daí eu fui procurando, e procurando... e o pior é que não tinha trigo (vou continuar lendo, não pode ser). Por isso foi um alívio, o Parra Ramírez...

Ganhei o livro do Sérgio, ou Sergi. O Sérgio é surpreendente. Primeiro, ele volta de Buenos Aires e me dá um livro de autor... mexicano. Segundo, no bar do Antônio me dá o presente e diz: "Para ti. Li na loja, assim, em diagonal, e achei bom". E como conseguiu encontrá-lo? La ira del filósofo ganhou o Prêmio Juan Rulfo de primeiro romance, mas a tiragem foi de 1.000 exemplares só. Quantos desses devem ter chegado a Baires? 50? O Sérgio o encontrou mesmo assim. Então, para mim, além de bom amigo, bom ator, bom professor de teatro (imagino: ainda não assisti a uma aula dele), e além, é claro, de perfeito Embaixador da Catalunha em Porto Alegre, agora ele é também "melhor catador de livros", dom raro e precioso, considerando o panorama geral. "Só tem merda", diria meu irmão (eu não posso, ele sim, sabe ser radical com graça). Talvez. Porém tem o Sérgio também.

Eduardo Parra, este cara, que não está na revista Granta, é um escritor de verdade - "de raça", dizia-se antigamente. E se não escreveu uma obra-mestra, provavelmente também não tinha essa ambição, já a escreverá. Por enquanto, escreveu um romance mais do que bom, que não se esquece logo após terminá-lo.

A história é forte e empolgante, aos poucos cada vez mais sórdida, e não está desprovida de humor. A personagem principal é Teo Mondragón, homem colérico e desesperançado, de 30 anos, solitário, distanciado dos pais (ele tem um passado, um pai militar com dois neurônios), professor de filosofia numa escola pública de um bairro suburbano. Seus alunos são personagens igualmente críveis: a maioria, "adolescentes apáticos y subnormales", "mudos, trepanados" (sem exageros: os alunos dessa escola são tarados, pequenos traficantes, chantagistas); outros (poucos) ainda podem, segundo o professor, "ser salvos", como Renata ("¿cómo puede ser que esta mocosa, con su sola cercanía, haga brotar mi parte más ridícula?") ou Mao ("de verdad experimentaba una progresiva simpatía por ese muchacho"). E o guarda da escola, Facundo, um homem generoso que serve de contraponto ao professor, também tem seu quê de especial: "El hecho contradice las más profundas creencias de Teo. Un hombre ayudando a otro. Porque sí, porque el otro lo necesita".

A linguagem é rica, oral e cheia de baixarias engraçadas (ao menos para mim, que não sou mexicano): adorei "guajalote", "chamaco pendejo"; ou "No diga pendejadas, filósofo. Si la policía me atora por lo del vídeo [é, há um vídeo na história], la libro porque no pueden comprobar una mierda. Pero si yo lo atoro a usted por chiva, no se la acaba".

Quanto ao enredo, é mais ou menos assim: Teo volta à escola onde três anos antes trabalhou temporariamente como professor. A escola não existe mais, é um prédio em ruínas ao lado de um rio fedorento (o primeiro capítulo, sobre os vapores que emanam do rio, vale por si só). Vai à procura de algo, um "presente" que um aluno escondeu para ele. Nas quadras de basquete e no prédio, lembra das aulas que deu, dos alunos mentecaptos, do cinismo (e vícios piores) dos professores. Evoca lembranças que nem sabe se faz bem em evocar. Junta as peças de tudo o que aconteceu.

Um trecho, sobre o "funcionamento" da escola:

-Qué interesante - dijo Teo -. ¿Y qué sabes de las calificaciones? ¿Es cierto que practicamente no hay reprobados?
-Sí, en este chiquero todos se gradúan. A los dueños les vale verga que aprendas o no aprendas. Cada güey que se da de baja es dinero que se les va de la bolsa. Así que si un maestro te reprueba, lo sobornas; si no afloja, lo arreglas con el dírec. En esta escuela todos sabemos que el único requisito para terminar es no morirte. Y pagar la colegiatura, claro.

E mais um, só para rir. Um "escrito sobre a existência" de um aluno-tipo de Teo:

La existencia es existir en esta vida. Yo existo por que me han pasado muchas cosas. Una de ellas fue cuando volbí de la muerte. Ívamos yo y mi hermano en el carro de mi hermano. Yo quise darme una vuelta pero no sabía manejar bien. Mi papá me dijo: no te desalejes mucho, pero yo no obedecí y agarré para la zona de los balneareos, donde va la gente a pasiar. Nunca me llamó la tensíon ir a balneareos porque no soy muy socialista con la gente, pero el chiste era salir a la carretera. En una curba nos voltiamos, porque me dieron ganas de estornudar. [...] Mi hermano salió muy herido y estuvieron a punto de imputarle un brazo, pero a mí me fue más peor porque según los doctores estube muerto unos momentos. Cuando devolví en sí, solamente recordaba que havía visto una luz que me llamava, pero no fui. Luego me dijeron que pude haver quedado en estado vegetariano o mal de mi razoncinio. Lo bueno es que estoy vivo y bien de mis facultades mentales. A veses oigo visiones, pero ya estaba así antes del choque.



Saturday, November 20, 2010

Pessoas, da Companhia H (ou Rossana dançando)

Domingo passado assisti, no teatro Renascença, à terceira parte do espetáculo de dança contemporânea Pessoas, trilogia acerca da obra de Fernando Pessoa e seus heterônimos, da Companhia H, com coreografia e direção de Ivan Motta. Fui, principalmente, para ver a amiga Rossana, bailarina da companhia. Sempre quis ver ela dançar, e agora me arrependo de não ter assistido antes a um espetáculo seu; de só ter ido agora, e ainda porque ela me deixou um convite na bilheteria. Adorei o espetáculo. Já disse a ela que não sei bem do que eu gostei mais ou por quê, já que o universo da dança é desconhecido para mim (assim como o da ópera e tantos outros), mas o fato é que foi muito bom, um prazer (da próxima vez vou pagando; arte se paga, se não quem é que o vai fazer). Essa terceira e última parte é dedicada à obra de Ricardo Reis. Não está mais em cartaz, mas quem sabe não volta?

Fiz o seguinte videozinho com meu iPhone (como gosto desse treco...). A Rossana, para quem não a conheça, é quem atravessa o palco de direita a esquerda, como uma rainha, com seus lindos cabelos loiros, e aparece de novo no finalzinho. Os versos de Ricardo Reis, projetados na tela, dizem: "Veio o nome de Lídia / mas não veio a mulher".

No Dia da Consciência Negra...

... copio um comentário que a Marinella reproduziu dias atrás no seu blog (seu último post, sobre uma criança na era da internet, é muito bom também). A Marinella escreveu sobre uma observação que o psicólogo Contardo Calligaris fez no programa Roda Viva de 8 de novembro. Ele disse: "É fajuto falar numa democracia racial no Brasil, ninguém acredita nisso". [Isso não é verdadeiro, muitas pessoas acreditam; mais correto seria dizer que não deveriam acreditar; bom...] E logo ele mesmo se questionou: "Se você tiver um filho branco e ele se apaixonar por uma negra, onde seria mais legal para eles viverem, como casal, e para terem filhos?". Resposta do próprio Calligaris: "Acho que o Brasil seria um lugar".

Wednesday, November 17, 2010

O que é ser escritor?

Gostei de uma historinha do Diário de Kafka contada por Leda Tenório da Motta, professora da USP e crítica literária do Estadão, no artigo "Oito e meia razões para detestar Leite derramado". Abro parênteses, explico o contexto da coisa. Quando Leite derramado, de Chico Buarque, saiu, li, no caderno da Folha de domingo, uma ao lado da outra, duas críticas totalmente opostas, uma extremamente elogiosa, de Roberto Schwarz, e uma outra extremamente negativa, de um escritor cujo nome não lembro. Meses depois, na revista Piauí, li que na Festa Literária de Paraty a escritora irlandesa Edna O'Brien disse que Chico Buarque nem era escritor. Passou muito tempo e este final de semana, de novo no caderno de domingo da Folha, li que alguns críticos literários estavam revoltados pelo fato de Chico Buarque ter ganho o prêmio Jabuti de melhor ficção do ano. Então procurei na internet mais alguma crítica sobre Leite derramado e encontrei o artigo de Leda Tenório, fecho parênteses. Não opino sobre se Chico é ou não é escritor (não li nenhum livro dele, a tal crítica negativa da Folha me deixou com um pé atrás, assim como as críticas negativas que recebeu na Espanha Budapeste), mas reconheço nesta historinha de Kafka, do ponto 5 do artigo, uma bela definição (dentre outras possíveis) do que é ser escritor.


5 - Relendo o Diário de Kafka, na tradução francesa de Marthe Robert, ao mesmo tempo em que lia Leite derramado, encontro, nas anotações lançadas no dia 19 de janeiro de 1915, algo que me parece ser uma advertência a quem queira ousar escrever depois de Kafka. Estamos numa manhã de domingo em Praga. O escritor tinha combinado de sair, logo cedo, com alguns amigos, mas acordou tarde e perdeu a hora. Conhecendo sua pontualidade, os amigos foram até sua casa, ver o que estava acontecendo. Ouvindo bater, ele pula da cama, às pressas, e se veste. Quando abre a porta, os amigos, visivelmente estarrecidos, recuam. O que é que você tem aí atrás? perguntam. Algo, na altura da nuca, que o impedia de mexer a cabeça, o estava incomodando, já na cama. E agora que os amigos perguntaram, ele termina de perceber: é uma espada que está enterrada ali. Instigada por tal morceau kafkiano, eu fiquei me perguntando se não é disso que se está falando quando se fala de literatura! Sem trocadilhos: se não é de um estorvo desses que se precisa para se poder escrever! O autor de Leite derramado tem por si o main stream editorial, o capital simbólico da USP, a mídia, um espaço que a literatura já não tem nos segundos cadernos, e tudo o mais que esses mimos trazem consigo: os eventos sponsorizados, as declamações na FNAC, as tendas de Paraty... Mas não tem a espada enterrada nas costas!

Monday, November 15, 2010

A Vaca Cega

Esta é a vaca que eu mais gostei das poucas que vi no Cow Parade de Porto Alegre, a "Vaca Cega". O autor só pintou os cílios dela (além de colocar um pequeno texto em braille em suas costas). Como era um dia de muito sol quando a vi e tirei a foto, logo pensei nos versos de Maragall, e em como esta vaca podia bem ser a do poema.

"[...]
i abaixa el cap a l'aigua i beu calmosa."

"[...] parpelleja
damunt les mortes nines, i se'n torna
orfe de llum, sota del sol que crema,
[...]"





PS nada a ver: This could be my soundtrack for these days. (I was listening to The Smiths last night, while trying to sleep.)

Thursday, November 11, 2010

Sunday, November 07, 2010

Idiotices da Academia 1 (nova série no blog!)

Trecho inicial de um artigo publicado hoje na Folha de S. Paulo: "Cinco anos após as revoltas que acuaram a França e chocaram o mundo, as periferias pobres e segregadas de Paris, Marselha, Lyon e outras cidades do país estão mais do que nunca à deriva. Cerca de um terço da população dessas áreas está abaixo da linha da pobreza, o índice de desemprego chega a 42% - 60% em algumas regiões - e as instituições públicas e seus representantes se tornaram cada vez mais alvos de ataques".

Pergunta que o próprio jornalista se faz, mais adiante no artigo, à procura de explicações menos óbvias do que as que sugeririam os números do texto anterior: "Mas, se insatisfação política e econômica ocorre por toda parte, por que é sempre na França que a tensão social parece explodir?".

Respostas dadas ao jornalista por Michel Maffesoli, um dos criadores da "sociologia do cotidiano", catedrático da Universidade Paris V e... o nosso Acadêmico Idiota de hoje!

-Não acredita em razões econômicas para os distúrbios?
-Não, podem ser no máximo uma das razões. O verdadeiro problema é que é preciso haver, em todas as sociedades equilibradas, momentos de desregramento. É o que Aristóteles chamava de "catarse" ou purgação. Quando olhamos as sociedades medievais, havia momentos como o Carnaval, as festas de inversão - o que Émile Durkheim chamava de desregramentos autorizados. O problema é que isso não existe mais na França.
-Essa é a razão por que esses distúrbios parecem ocorrer somente na França?
-Sim, pois existe aqui, desde Descartes, uma tradição racionalista da sociedade, que busca conter as emoções, as paixões, etc. É uma razão cultural!
-E ela também explica os distúrbios nas periferias?
-Sim, e isso não depende da classe política. Tanto esquerda quanto direita buscam uma espécie de assepsia da vida social. Logo, não há lugares ritualizados de expressão da efervescência - como o Carnaval, por exemplo. Daí a violência gratuita, inexplicável.

E digo eu: mais circo, então! Um pouco de circenses para os franceses incendiários!


PS: Resposta a uma pergunta similar dada ao jornalista pelo rapper marselhês Mino Brown, que não deve ter lido Durkheim:
-Qual é hoje a situação nos subúrbios que você conhece em Paris, Marselha...?
-Há cada vez mais diferença entre os muitos ricos e os muitos pobres. O sentimento de ser posto de lado é um grande problema para o país.