Wednesday, November 17, 2010

O que é ser escritor?

Gostei de uma historinha do Diário de Kafka contada por Leda Tenório da Motta, professora da USP e crítica literária do Estadão, no artigo "Oito e meia razões para detestar Leite derramado". Abro parênteses, explico o contexto da coisa. Quando Leite derramado, de Chico Buarque, saiu, li, no caderno da Folha de domingo, uma ao lado da outra, duas críticas totalmente opostas, uma extremamente elogiosa, de Roberto Schwarz, e uma outra extremamente negativa, de um escritor cujo nome não lembro. Meses depois, na revista Piauí, li que na Festa Literária de Paraty a escritora irlandesa Edna O'Brien disse que Chico Buarque nem era escritor. Passou muito tempo e este final de semana, de novo no caderno de domingo da Folha, li que alguns críticos literários estavam revoltados pelo fato de Chico Buarque ter ganho o prêmio Jabuti de melhor ficção do ano. Então procurei na internet mais alguma crítica sobre Leite derramado e encontrei o artigo de Leda Tenório, fecho parênteses. Não opino sobre se Chico é ou não é escritor (não li nenhum livro dele, a tal crítica negativa da Folha me deixou com um pé atrás, assim como as críticas negativas que recebeu na Espanha Budapeste), mas reconheço nesta historinha de Kafka, do ponto 5 do artigo, uma bela definição (dentre outras possíveis) do que é ser escritor.


5 - Relendo o Diário de Kafka, na tradução francesa de Marthe Robert, ao mesmo tempo em que lia Leite derramado, encontro, nas anotações lançadas no dia 19 de janeiro de 1915, algo que me parece ser uma advertência a quem queira ousar escrever depois de Kafka. Estamos numa manhã de domingo em Praga. O escritor tinha combinado de sair, logo cedo, com alguns amigos, mas acordou tarde e perdeu a hora. Conhecendo sua pontualidade, os amigos foram até sua casa, ver o que estava acontecendo. Ouvindo bater, ele pula da cama, às pressas, e se veste. Quando abre a porta, os amigos, visivelmente estarrecidos, recuam. O que é que você tem aí atrás? perguntam. Algo, na altura da nuca, que o impedia de mexer a cabeça, o estava incomodando, já na cama. E agora que os amigos perguntaram, ele termina de perceber: é uma espada que está enterrada ali. Instigada por tal morceau kafkiano, eu fiquei me perguntando se não é disso que se está falando quando se fala de literatura! Sem trocadilhos: se não é de um estorvo desses que se precisa para se poder escrever! O autor de Leite derramado tem por si o main stream editorial, o capital simbólico da USP, a mídia, um espaço que a literatura já não tem nos segundos cadernos, e tudo o mais que esses mimos trazem consigo: os eventos sponsorizados, as declamações na FNAC, as tendas de Paraty... Mas não tem a espada enterrada nas costas!

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