Monday, November 09, 2009

Capítulo 9 (novo rascunho)

J.-P. era daquelas que ficam caladas. Nesses momentos, eu ficava calado também. Quando o silêncio se prolongava, virando desagradável, ela afastava a vista o instante preciso para acender seu cigarro preto, reerguia a cabeça, e dava a primeira tragada com os olhinhos inquisidores e meio risonhos cravados em mim, levantando o queixo como a me perguntar: "Quê?". Então eu me recostava no sofá, apoiava uma perna sobre a outra, jogava a cabeça para trás e via, por entre as lâminas da persiana, de cabeça para baixo, as roupas estendidas nos varais, os toldos encardidos das sacadas, o pátio interior do quarteirão (um pátio interior grande, do Eixample barcelonês); ou fingia pôr minha atenção no único enfeite nas paredes da sala, a reprodução de um desenho de Picasso. Minha memória faz troça de mim: não pode ter sido um minotauro no ato de deflorar uma ninfa, é descabido. Não: era um rosto de mulher, feito de um traço só. Esboço, talvez, da Mulher de cabelo amarelo do Museu Guggenheim, com suas curvas ondulantes - impossíveis, de tão singelas - e suas cores cálidas e infantis.

Os silêncios me exasperavam, sobretudo quando eram aproveitados pela doutora para me perguntar sobre a infância. Se tive uma infância feliz. Se brigava com meus irmãos. Se tive amigos na escola. O que tinha a ver minha infância com o fato de eu estar abalado por não ter convidado expressamente um colega a ir ao teatro (ter dito, só: venha conosco, se estiver a fim), ou por ter dado tchau, mas não no tom apropriado, à mãe de uma amiga minha? O que tinha a ver minha infância com o fato de algum interruptor no cérebro ter sido desligado, ou ligado, de um dia para o outro, um ano atrás?

A maioria das vezes, porém, a obsessão pelo que eu tinha dito ou feito, a tal ou qual pessoa, nas horas ou os dias precedentes, a urgência de ter de saber se tinha dito ou feito bem, não lhe deixavam mais opção do que entrar no meu jogo. Então a conversa sobre o assunto concreto, a exposição do que estava me atormentando, a visão do fato sob uma nova luz, permitia-me me dar conta de como aquilo era absurdo, desfazia, com sorte, o motivo da obsessão. Era um dar-me conta instantâneo, uma realização imediata, um céu se abrir.

Chegado o final da sessão, J.-P. batia a mão na coxa e dizia, com voz pesarosa: "Temos que ir". Era só eu que ia. Se não tinha me desvencilhado totalmente da pergunta, saía mal dissimulando meu descontentamento. No caso contrário, ia embora aliviado, a mente vazia, totalmente grato à doutora - quase a idolatrando -, pulando os degraus de dois em dois. O habitual era que eu subisse apressado e ansioso pelo elevador, olhando, um a um, os números se acenderem até o sétimo andar, e descesse satisfeito pela escada, prolongando o momento, desejando chegar em casa e poder sentar à mesa, sorridente, falante, com meus pais e irmãos.

Mas era sempre só um alivio. O caminho mais direto para casa passava por uma rua mal iluminada, de calçada estreita, com apenas transeuntes e quase sem lojas, só um muro comprido de concreto, uma garagem, um túnel de lavagem e vários night clubs. Era habitualmente em algum ponto dessa rua que uma nova pergunta começava a se insinuar, sem que eu tivesse recursos para impedi-lo. A pergunta derivava, em ocasiões, do que eu vinha de resolver com J.-P., como se a doença também tivesse a capacidade de apresentá-las sob diferentes óticas. Por vezes era uma pergunta anterior, cuja resposta eu já tinha esquecido; o motivo de sua eliminação (em seu momento, diáfano) havendo perdido o seu contorno e valor.

5 comments:

Anonymous said...

Não seria: "e dava a primeira TRAGADA já com os olhinhos inquisidores e meio risonhos cravados em mim..."

Soou muito estranho isso de 'pitada'. Posso ter entendido errado, achando que tinha relação com o ato de fumar, mas se não o tem, mesmo assim, se tiver relação com os olhos de J.-P, ainda , pra mim, soa estranho.

Lendo mais esse cap., o personagem me parece ainda mais denso. rsrs

Um abraço,

A.E

Roger said...

É mesmo, tragada! Obrigadão!!!

Abraço,

Roger

R. Luiz said...

"Eu me recostava no sofá, apoiava uma perna sobre a outra, deitava a cabeça para trás e via, por entre as tiras da persiana, de cabeça para baixo, as roupas tendidas nos varais e os toldos das sacadas do pátio interior do quarteirão; ou, então, o único enfeite nas paredes brancas da sala:" Maraaaaa... :^) ... Hummm concordo com o Anonymous, este capítulo ele me pareceu bastante denso... Mas entendo a situação dele, sei muito bem como é isto...!

Dois abraços,

R.

Unknown said...

Muito bom mesmo! Existem algumas questões sobre a técnica psicanalítica que talvez expliquem o silêncio (mas para ti, naquele momento, não o justificou),bem como perguntas sobre a infância, mas pode ter faltado por parte dessa profissional a sensibilidade para entender que não era isso de que precisavas naquele momento... Mas de fato adoreeeei!!!

Roger said...

Obrigado Raqueeeel! ;)