Wednesday, March 10, 2010

Capítulo 24 (rascunho)

No café que já chamo de meu (The Cozy Cup, que é de verdade aconchegante), tive uma ideia que deixaria Ray orgulhoso de mim, dando pulinhos em seu gabinete da universidade ou onde ele agora estiver. A história saiu no jornal, quase inteirinha. Não tenho um título ainda, nem uma capa (que incluirá, certamente, a frase "baseado em fatos reais"). Será o novo Joe Gould's Secret, embora diferente, não só para leitores cultivados (meu nicho é bem maior); e sem o velho charlatão vagabundo como protagonista: em seu lugar, a jovem mais sensual que se possa imaginar (sem exagero: sua foto está no Times). Uma história com um forte apelo sexual. A jovem protagonista sai de casa para correr em Riverside Drive, usando uns shorts curtinhos e um top. Sai, e logo esquece quem ela é (o assunto é candente, neurocientistas do mundo inteiro se debruçam sobre esse tipo de doenças). A garota é de família rica e tem 18, 19 anos máximo. Primeiro procura ajuda na vizinhança, interpela velhinhas passeando cachorrinhos, que nem param para escutá-la, acham que é louca. Ela corre sem saber aonde ir. Entra na loja da Apple: geeks e turistas esquecem sua paixão por engenhocas e ficam embasbacados com a garota semi-despida, que num computador tenta checar o e-mail (recuperar sua identidade, em vão); não se aproximam, não falam com ela (estamos na zona nobre da cidade, onde as distâncias se respeitam, e eles são tímidos demais). Começa o périplo da moça pelas ruas. Alguém lhe paga um café num Starbucks (a cidade não é, afinal, tão desalmada). Mas também há quem se aproveita da infeliz. Um mendigo compartilha sua comida com ela (eles comem com as mãos), e depois cai em cima dela. Completamente perdida, a jovem está à sua mercê, como uma boneca (é estupro, mas não aquele estupro, um estupro leve). Ela faz amizade com todo tipo de malandros, tradicionais e novos (vivemos a pior crise desde a Grande Depressão). Para isso, cria uma persona, já que, mesmo não sabendo quem é, cresce sua percepção do risco. (Estamos nos bairros marginais da cidade, em contraste com o Upper West Side, de onde ela vem.) Com os pés destroçados (lhe roubam os tênis) e as roupas rasgadas, cada vez mais suja e cada vez mais sexy, ela se mimetiza com o entorno, vira uma alma errante a mais. Até que, não aguentando a dor que lhe produz caminhar, se joga no rio (não para se matar). À deriva, chega numa ilhota com um farol. (Já não estamos na cidade, nem na civilização; a civilização está lá, a escassas milhas dela, ela a enxerga, mas não pode voltar.) Esses faróis são operados automaticamente. Mas nessa ilhota tem um faroleiro (ela não fica falando com as pedras): um velho barbudo e sujo, homem do bem - solitário e alcoólatra. Ele cuida da garota aparecida como por encantamento, oferece-lhe comida e agasalho. Deseja-a, é claro, mas não a estupra: tenta seduzi-la. Porém, um dia se excede, e ela se joga de novo na água (agora sim, para se afogar). (Talvez eu faça uma reflexão, estabeleça um paralelo entre a doença dela e os males da sociedade.) Ela perde a consciência. À beira da morte, entrevê quem é. Ela tem sorte: o capitão do ferry a Staten Island avista um vulto boiando, para máquinas, resgata-a. A jovem recobra totalmente a identidade e soluça, feito criança, sem roupa nenhuma, no deck do navio que a leva de volta a Manhattan. Não somos donos de nós. Vejo os displays nas maiores redes de livrarias, com a imagem dela em tamanho real. Vejo o filme, como Ray desejaria.

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