Monday, March 22, 2010

Capítulo 28 (novo rascunho)

Na luta contra a neurose dei muitos passos em falso. E os certos, que demorei tanto em dar, que por tempos considerei firmes como rochas, marcos no caminho que só me permitissem avançar, vejo agora que não o foram tanto, não me impediam voltar atrás. Nos inícios me importava com o que todo o mundo pudesse pensar (a padeira do bairro, por exemplo, se eu tivesse esquecido de cumprimentá-la); logo, só com o que podiam pensar os colegas; mais adiante, perguntava-me sobre aquilo que dizia respeito aos amigos. Até que, afinal, limitei à relação com Lídia minha necessidade de ser bom. Deixei de passar tudo pelo crivo. ("Você faz passar tudo pelo crivo, indiscriminadamente", disse certa vez J.-P.: "É um crivo indiscriminado".) Paralelamente, quando me dei conta do inútil de tentar adivinhar o que os outros pensavam, resolvi me preocupar unicamente com o que pensava eu, com minhas intenções, fossem estas percebidas ou não. Eram passos certos, embora não soluções, pois a natureza do pensamento obsessivo complicava-me igualmente chegar a conclusões sobre mim. É interessante, não eram passos que eu desse sozinho: a própria doença era minha companheira nessas guinadas, com sua força para se perpetuar, fornecer-me obstáculos novos. Como dizendo: você não se preocupa mais com isso?, vê se consegue não se preocupar com isto. A neurose é um bicho.

Os métodos para responder as perguntas também foram mudando, não sempre para bem, com muitos tropeços. Eu os abria e encerrava, à procura de algum que me retornasse, me reaproximasse, por um momento que fosse, ao modo de pensar normal. As vocalizações internas, as verbalizações externas, o auxílio procurado ao escrever com o dedo em paredes e portas,... tudo fez parte dessa busca. (Supreendeu-me, sofri com a dificuldade de os psicólogos entenderem o caráter das vocalizações internas. Imaginem uma frase, com todas as palavras. Logo pensem ela, não nela, com todas as palavras. Terão uma frase carente de sentido, afastada de seus referentes, sem conotações. Algo bem diferente do pensamento que flui, que não se sente e que não é feito só de palavras.) Ao ver que em sua forma de frases não conseguia responder as perguntas, tentei uma maneira mais completa de pensar: a evocação, a recriação na mente das cenas, com a maior riqueza, o maior contexto e colorido que eu conseguia dar-lhes. E se durante muito tempo me empenhei em fixar as respostas para evitar que uma mesma pergunta voltasse a me importunar, tentando reter a forma exata da resposta na memória, às vezes anotando-a (uma frase com sentido, um pensamento entrevisto: "Não, não é possível que Eulália tenha pensado que eu só queria os livros"), terminei por deixar de fazê-lo, querendo que o pensar corresse, livre de interrupções, ciente de que uma pessoa sã não precisava fixar nada... Os métodos descartados, no entanto, continuavam a existir, seguiam à minha disposição, para quando os novos não funcionavam. Nunca deixei de jogar mão de todos eles.

A urgência com que queria estar bem levava-me a esquecer que a luta era contra uma doença, não contra suas manifestações. Assim, perdida a perspectiva, deixava que as perguntas ocupassem o primeiríssimo plano. E tentava de novo fixar as respostas, queria de novo ser bom com todo o mundo... Com a guarda baixa, venciam-me inclusive as perguntas mais gratuitas, aquelas não conectadas com nenhuma suposta "ética". Um meio-dia, na residência, peguei a caixa de cotonetes de cima da cômoda de Douglas, esvaziei-a sobre meu cobertor. Não sei o que precisava contar, acredito que os anos transcorridos entre duas datas. Pouco importa. Nesses casos, a necessidade era me demonstrar que eu não era incapaz de fazer isso. Somar, subtrair, lembrar a forma correta de escrever uma palavra: são limitações absurdas, muito difíceis de aceitar, e o neurótico esquece que podem ser só temporárias; pensa, pelo contário, que o aproximam de quem perdeu totalmente a razão. Fui separando de um em um os cotonetes da pilha, contando-os; várias vezes, porque junto com a solução vinha a dúvida, que me obrigava a recomeçar... Quando por fim dei por bom o resultado, assaltou-me outra velha obsessão: Douglas, "o outro", não podia suspeitar o que eu fiz - que eu fazia tais coisas. Demorei um tempão colocando os cotonetes de volta na caixa, arrumando-os em forma de hélice, nivelando as pontas de algodão com a palma da mão com cuidado de não achatá-las.

O desejo de estar bem nunca foi tão intenso, tão imperativo como no verão de 2000. Compartilhava a opinião de Lilian e Ray: estava diante de uma oportunidade extraordinária; e não queria sentir a frustração de não aproveitá-la. Estava, além do mais, na cidade que eu gostava. Contudo, e embora eu já soubesse o que era necessário saber sobre a neurose, "não estava doente", não tinha essa consciência clara. Só tinha, assim pensava, uma pergunta para resolver, a última, a acusação mais grave. Liberando-me dela, tudo correria bem. Se houvesse sido mais consciente da doença, teria procurado ajuda. Falado com Kate ou as outras duas amigas que eu fiz. Sabia que um dos melhores especialistas em transtornos obsessivos trabalhava ali mesmo, no Hospital público de Bellevue. Em vez de falar ao telefone com meu pai sobre Lídia e Menorca, ter-lhe-ia prestado maior atenção quando punha o acento na neurose, sobre a que, nessa altura, sabia tanto ou mais do que eu.

No comments: