Friday, March 19, 2010

Capítulo 27 (novo rascunho)

Em e-mails enviados a amigos apelidei Douglas de O Monstro de Michigan. Meu companheiro de quarto na residência era grandão, meio obeso, de testa e bochechas infladas. Usava pequenos óculos redondos de aro de metal e prendia a cabeleira cor de palha num rabo-de-cavalo. À diferença da maioria de alunos (com a exceção da dúzia de estrangeiros, garotas de 22 anos, recém formadas), tinha a minha idade, como Kate; e, como Kate, era atencioso e afável - ou assim foi comigo a primeira noite. Falou muito; eu fiz perguntas e escutei. Exprimia-se com clareza, devagar, pensando enquanto falava, e sua voz grave era agradável, serviu-me de bálsamo, teve o poder de me acalmar. Quando fechei o livro que eu lia por cima e apaguei o abajur, minha intenção era me pôr a pensar (antes de dormir, eu dispunha de tempo de sobra; e, como nos banheiros, podia mexer os lábios sem me preocupar com ser visto); mas consegui esperar um pouco, gostava de ouvir Douglas falar. Tocamos no assunto das armas, que sempre me deixou perplexo. Fazia um ano do massacre do Instituto Columbine. Douglas me explicou algumas das crenças do americano do meio-oeste, com as quais ele podia não concordar, mas que entendia e respeitava. Disse que as mensagens da grande mídia tocavam fundo, eram assimiladas, interiorizadas acriticamente pela população. O problema era essa mídia estar tão concentrada, o que deixava em descrédito a qualidade da democracia no país. As pessoas não renunciavam às armas de fogo porque sem elas sentiam-se impotentes diante do próprio Estado, que (essas pessoas pensavam) não só não iria defendê-las, quanto era capaz de atacá-las. Assaltos e atos de violência comuns - o medo de o vizinho estar também armado - tinham pouca importância. Era medo do detentor do poder, resistência ao monopólio da força (e outros) pelo Estado. E se para alguns isso era sinal inequívoco de paranóia, para outros era questão de bom senso e até liberdade. (Agora, com a crise, isso mudou. A classe média tem medo de que aqueles que têm menos, aqueles que estão passando mal, aborreçam-se, façam uma revolta, procurem briga com os que ainda desfrutam de uma vida abastada. Por isso tantas armas são vendidas, para os uns se defenderem dos outros. Hoje o medo é local.) "Nice meeting you, Roger", ouvi do nada, minutos após termos apagado as luzes e ficado calados; dito como eu nunca tinha ouvido, não como formalidade, senão como pensado nesses minutos no escuro. Essa noite, o sono e o bem-estar causado pelas palavras de Douglas venceram, e a pergunta foi ficando para o dia seguinte, adormecendo comigo.

Nunca voltamos a estar tão próximos. Passados uns dias, ele me disse que era gay. Não foi uma confissão, nem uma proclama. Surgiu naturalmente em alguma conversação. Dar-me-ia a ler o enredo de um romance que estava escrevendo, ou pretendia escrever. Quinze ou vinte páginas, o resumo detalhado de uma série de histórias entrecruzadas de amores e ódios, traições e vinganças passionais. Não sei o que eu pensei, era incapaz de me concentrar em qualquer leitura. Agradeci-lhe a confiança e o fato de querer saber minha opinião. Passadas umas semanas, nossos diálogos haviam se reduzido ao mais elementar: cumprimentos, perguntas triviais sobre o dia. Coincidíamos pouco. Eu passava muito tempo no apartamento, dormia cedo, e ele passava o dia fora e à noite costumava sair. Dava-se muito bem com Ernest e com o filho dele, que também estava na cidade, tocando o saxofone num club de jazz. O motivo do distanciamento, no entanto, foi outro. Douglas nunca disse nada, não perguntou. Mas, pelas horas de convivência, em que eu não me preocupava com esconder meu estado de ânimo, e provavelmente muitas vezes agi como se não houvesse alguém ao meu lado com quem o mais natural teria sido conversar, acredito que percebeu que alguma coisa estava errada. (Talvez foi o único a perceber.) Não se importou, deixou-me quieto. Sabendo como Kate interpretou meus silêncios, porém, Douglas pôde ter pensado qualquer coisa. Afinal de contas, ele não estava lá quando ultrapassei os limites. E são muitos os possíveis tormentos. Se a colega de quarto de Kate não saía da cama, outras meninas, de Estados longínquos, drogavam-se para suportar a pressão de ter de encontrar um emprego e assim poder ficar na cidade grande.

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