Friday, April 09, 2010

Capítulo 29 (rascunho)

A solidão nos deixa tristes e a tristeza nos torna frágeis. Por isso não me decido a bater à porta de Anne, ou a aparecer no patamar da escada, de manhã, na hora em que ela sai. Mas há semanas penso nela, quero encontrá-la, ouvir sua voz, sentir de novo seu olhar, gozador ou ensimesmado. Não sou de ficar espionando, nem de tecer estratégias, mas por três dias tentei provocar o encontro. Enquanto me arrumo, ouço movimentos no andar de cima, arrastar de cadeiras, passos. Acredito distinguir o som amortecido de uns pés de meias, ou chinelos, na madeira, do som seco e vigoroso do salto alto. Morar sozinho aguça o ouvido. Então eu saio, entre as 8 e as 8:15 h. Em vez de dobrar à direita na rua Clifton e ir direto para o café, continuo pela avenida Bedford, tão devagar quanto eu posso, como se fosse pegar o metrô. Faço esse pequeno contorno sem olhar para trás, desejando ser avistado por ela, e que ela não mude seu caminhar apressado (não teria por quê), me alcance. Só no final, quando atravesso para a outra calçada, olho de viés. Sem rasto dela, sigo em frente, passando pela boca de metrô, desiludido, dirigindo-me ao Cozy Cup no sentido contrário do habitual, acenando com a cabeça para um ou outro rosto mais ou menos familiar.

Fico no café por horas, até depois do almoço, no banco da mesinha do corredor. Aguardando lembranças de nove anos atrás, pensando em Alberto R. Rabiscando ou desenhando no caderno, deixando-o aberto por alguma página escrita pela metade antes de a garçonete vir me atender ou alguém passar para ir ao banheiro. Desenho a caneca de cerâmica vitrificada ou o que enxergo desde minha posição, uma ponta do balcão, com a caixa e alguns bolos expostos, a carcaça grená da máquina de café, os quadros negros pendurados no teto, com nomes de saladas, sopas, doces escritos em giz, numa elaborada imitação de caligrafia infantil. A gravura na parede prende minha atenção, demoro-me observando-a. É uma mulher que pula de um prédio alto, no que parece a representação de um suicídio, mas não é - não acho que seja. (No sábado passado, um menino ficou olhando o quadro, enquanto o pai escolhia um jogo na prateleira ao meu lado; assinalando com o dedo a mulher, o menino perguntou o que era; um anjo, disse o pai.) O prédio é semelhante àquele que eu vi na Quinta avenida, um castelo medieval. Um de seus andares preenche o lado direito do quadro, em primeiro plano, como se pintor e observador vissem a cena de uma janela desse mesmo andar. O céu ocupa as outras duas terceiras partes: em cima, uma nuvem preta ameaçante; no meio, ar cor de água-marinha acinzentado; na base, o contorno distante da ilha de Manhattan e as águas da baía, de um preto esverdeado tomado do céu. (A perspectiva é impossível. Onde se ergue o castelo?, acima do Brooklyn, do Queens?) Dois raios de sol furam a nuvem, deixando um trecho de mar reluzente, em volta da ponta da ilha, e iluminando o castelo (os arcos, os parapeitos, as pedras do muro) e a mulher. Ela pula de costas, com as pernas e os pés esticados, o corpo flexionado na cintura, num ângulo reto; a cabeça e os olhos fechados no centro exato da composição. É uma mulher executando um salto ornamental, vestindo um colorido maiô de natação. Ela não cai, nem está em movimento (só a memória de um salto traz esse pensamento): está parada no céu. Seus cabelos são da cor do castelo, branco e cinza alternado, como os de uma estátua; em contraste com as coxas, as pernas e os pés, de pele fina e tersa, que são de uma mulher real. Parece uma cena de filme, uma cena onírica, de um filme voltando atrás. A mulher abaixa lentamente as pernas, endireita o corpo, vai subindo e retomando a posição vertical. Até pousar com graça, os braços estendidos, no lugar não visível de onde saiu. Um anjo sem asas.

Alguma vez pensei em pular. O medo que eu sentia, o efeito indizível de pensar que poderia não voltar mais ao normal - a ser quem eu era -, ficar para sempre me torturando ou cair do "lado de lá", levou-me a imaginar um final parecido. Se eu não consigo me recuperar, nesses momentos pensava, vou preferir morrer. Mas a possibilidade de enlouquecer para sempre me alarmava de maneira passageira (nunca se tornou assunto, nem com J.-P.). O medo é um sentimento, e minha mente, ocupada como estava em resolver uma pergunta após outra, deixava que esse e outros sentimentos aflorassem, mas dava-lhes muito pouco espaço, muito pouco tempo, insuficiente para poderem se assentar.

Volta e meia penso, agora, se não seria melhor ir para frente, passar para um novo estágio, abrir-me ao que vier. Todos temos nossas feridas, disse a mulher do parque, nossos traumas. Eu tenho a minha, mas seus efeitos já ficaram para trás. Esta não é uma escrita terapêutica - não mais do que qualquer escrita é. Quando ela ter-me-ia sido útil, eu estava privado da liberdade e da calma mínimas para empreendê-la. Por isso nos cadernos só há desabafos, exortações a mim mesmo a não desfalecer, citações encontradas em livros que eu achava que podiam me ajudar, breves notas. O que me leva agora a querer reviver, contar tudo? Uma espécie de dívida contraída com alguém? Foi bom ter começado a escrever anos antes de ficar doente. Porque o que me permitiu não afundar foi a convicção de que aquilo que me estava acontecendo mereceria, no futuro, ser contado; embora precária, essa foi minha tábua de salvação. Não importa quão grandes sejam os sofrimentos na vida de um escritor: superados, serão para ele o material de mais valor. Nesses anos da neurose em Barcelona, li o livro escrito por A. E. Hotchner sobre os últimos anos da vida de Hemigway. (Esse livro eu pude ler com atençao, talvez porque tratasse de uma doença mental, Hemingway sofreu de mania persecutória, paranóia). E uma frase do escritou reafirmou minha convicção. "Como diabos se lamentar dos dramas pessoais", disse Hemingway a um fragilizado Scott Fitzgeral, em Paris, "quando se é escritor?. Ao contrário, se ha de estar agradecido, porque qualquer escritor dever ser gravemente ferido antes de poder escrever". É sobre a ferida que se há de escrever, "permanecendo tão ligado a ela como um sábio em seu laboratório". A convicção me deu esperança - viver para contar. E essa esperança foi tão genuína, teve tanta força, que sobreviveu até hoje, quando não é mais necessária. Estou em dívida com uma esperança...

4 comments:

Anonymous said...

Olá
Encontrei por acaso. Achei bonito; gostoso de ler isso que tu chamas de Capítulo 29. Parabéns.

Roger said...

Olá
Que bom que gostou. :) Não é bem um capítulo, mas é o "trecho" 29, sim, de um romance que estou escrevendo como dissertação de mestrado na PUC-RS. Abraço. E obrigado por comentar. :)

Anonymous said...

Puxa, dissertação na PUC! Parabéns.
Colei nos dois primeiros parágrafos. A descrição do quadro, gravura com o salto da mulher está incrível, finalizando com aquela inesperada mobilidade imaginada. Show de bola!

Roger said...

Oba! Muito obrigado de novo! Isso me dá força para seguir! :D :D