Friday, October 31, 2008

Coragem

(Um conto.) (Sugestões são bem-vindas.)


Belize:
Somewhere in there I recall, Margaret and Thaddeus
find the time to discuss the nature of love. Her face is reflecting
the flames of the burning plantation, you know the way white
people do, and his black face is dark in the night and she says
to him, "Thaddeus, real love isn't ever ambivalent."

Tony Kushner, Angels in America



Quando ouviu que sua filha tinha sido baleada, pensou que nada no mundo seguia em seu lugar. As paredes se inclinaram, o chão não ia lhe sustentar. O interior de seu corpo esvaziou-se, e ele achou que fosse se dobrar. As janelas o olhavam. Os vidros, bombeados para dentro da casa, batendo como corações, parecia que iam estourar. O mar azul de fora emudeceu. E um apito começou a subir pelo fio do telefone e a fuçar-lhe o cérebro, sobrepondo-se à voz. "Sua filha foi baleada".

A única foto dela estava em cima da lareira: a foto dela, ele e a mulher. Era de cinco anos atrás. Quando se separaram, ele sentiu-se culpado, e não levou nada para a casa da praia, onde foi morar. Ao contrário: a casa da praia ficou quase vazia, pois ele colocou as roupas da filha e da mulher, os livros e as lembranças em caixas de papelão e enviou-as por correio à casa da cidade. Restou só aquela foto, tirada na praia, em um dia de sol.

Soltou o telefone, tremiam-lhe os joelhos, apoiou-se no balcão que separava a sala-cozinha da sala de estar. Durante uns minutos ainda ouviu o apito, não conseguiu pensar. Depois, calçou uns sapatos, vestiu seu casaco de linho de verão e andou como um autômato até a garagem – como se os pés, como se o corpo não fosse mais o seu. Sentou na direção do velho Chevrolet e tentou ligar o carro, que por três vezes não pegou. Pensou que não ia ser capaz de dirigir até a cidade. E que aquilo não era possível – não podia acontecer.

Dirigiu lentamente pela rua à beira-mar, toda esburacada. Enxergou a praia deserta entre as dunas e, do outro lado, as casas vazias, de janelas fechadas – os quiosques fechados também, desmontados. Cinco anos atrás, ele procurou aquele despojamento, aceitou aquele despojamento, adotou-o. Era o mais parecido com uma espécie de castigo, e isso o levaria a uma purificação. Ela aprendeu a dirigir nessa mesma rua, tão diferente nos meses de verão. Com onze anos, ele a sentou no colo e ela tomava conta da direção; com treze, ela começou a mexer nas marchas; não chegava aos pedais. Lembrou da vez em que entraram na praia e encalharam na areia, de suas risadas espasmódicas. Pareceu-lhe que ouvia ela rir. Depois veio a faculdade e ela nunca tirou a carteira.

Não ouvia o quebrar das ondas; e os latidos do cão de guarda que corria atrás do carro, e pulava, chegavam-lhe abafados, como de um outro lugar. Ele a protegia quando, nesses meses longos das férias, ela começou a namorar – e a beber, a fumar. A mãe sempre foi mais conservadora, e a filha sabia disso e usava ele, que por sua vez sabia e deixava-se usar: bastavam um piscar de olhos, um olhar – quem não obedeceria o olhar de alguém que sabia tanto o que queria –, um pigarrear inocente. Assim se entendiam. Pisou assustado no freio ao ver-se com o carro no meio da estrada – sem saber como tinha chegado lá, a cidadezinha às costas. E jurou que ia estar atento ao tráfego; eram 150 km até a cidade e prometeu a si mesmo que ia estar atento ao tráfego.

Desviou a vista para o rádio. Não queria ouvir nada nem ninguém, e quase sorriu ao pensar que provavelmente o aparelho nem funcionava. Ouviu: Pai, como tu é desligado. Nesse tempo todo, a mulher não quis mais saber dele; ela sim, ela ligava. Ligava sempre no dia do aniversário dele e na noite de São João. Essas duas ligações o deixavam feliz, dois meses antes começava a esperá-las. Apertou os lábios ao lembrar das festas: como ela, aos 14, aos 13, aos 12, cravava os olhos nas fogueiras. Eram o fogo e o inverno que davam à filha uma beleza superior. Ela fitava o fogo como se nada na vida – que apenas começava –, como se nada na vida pudesse— Parecia que se irmanasse ao fogo, e seus olhos e seus cabelos, em vez de refletir as chamas, viravam profundamente pretos, de um preto aceso. No verão era mais menina, com seu corpo opulento, soberbo, mas sem aquele olhar. Sentiu a vibração do carro – aqueles ferros velhos querendo se desconjuntar – e um formigamento a subir-lhe pelas pernas.

Quis bloquear os pensamentos. Fixou a atenção nos modelos e as cores dos carros que o ultrapassavam. Mas nessa época, e nesse dia, havia poucos carros na estrada. Então foi dizendo para si os nomes das árvores nas margens – cedros, jacarandás –; e quando o bosque interrompia-se, dos campos de lavoura. Surpreenderam-lhe usinas que não lembrava da última vez. Como ela teria mudado em cinco anos! Ele só tinha a foto da lareira e a voz, mais densa a cada ligação, a cada ano; e com isso ia compondo o crescimento da filha, mas não era bastante. Sempre perguntava pelos cabelos dela. Até que um dia ela disse: Pai, isto está virando uma obsessão! Ele não queria que os cortasse. Eu sou aquela, ela dizia, referindo-se à foto, ou talvez aos verões passados na praia, ou— Ele acreditava, gostava de acreditar nessa não-mudança.

De todos os quadros que ele pintara, que ninguém vira, que a umidade e o salitre estragavam, quantos eram ela? Nas camadas sobre camadas, nesses quadros tão pesados, de somente um ou dois tons, o que havia? São marinhas, ele dizia, quando perguntado pela filha, não é nada; e adicionava: gastar pintura por gastar. Mas ela nunca acreditou. Essa era a pergunta dela, que sabia que o pai vivia a caminhar demoradamente pela areia e a pintar em casa. São teus cabelos, ele brincava então. Só que nem sabia de certo. Essas manchas e essas cores eram ela? Não podiam ser o que ele nunca foi. É tu, é tu, minha filha! Tremeram-lhe as mãos na direção. Esticou os braços com força, retesando desde os ombros até os dedos. Começou a tremer-lhe o rosto. Nunca imaginara que fosse possível ficar ainda mais só.

Desceu do carro tremendo, em um posto de gasolina que ele não conhecia, novo, brilhante, deserto. Não se via ninguém, mas todas as luzes estavam acesas. Foi tirar a carteira do bolso, e a carteira caiu no chão. Em vez de se agachar e recolhê-la, cobriu-se o rosto com as mãos. “Senhor”, ouviu. Alguém lhe devolveu a carteira. Ele apenas enxergava. “O senhor está bem?”. Ele cruzou os braços sobre o peito, agarrando os ombros para não tremer mais, e fez que sim com a cabeça. Era uma mulher loira, mais alta do que ele, de roupa branca, com uma aura dourada. A mulher abriu a tampa e encheu o tanque do Chevrolet; logo, sem deixar de olhar para trás, voltou para o seu carro. Então ele pôde vê-la: tinha o cabelo comprido e usava dois grandes brincos de argola dourados. Reparou na blusa branca, nas formas do corpo, na cintura. Quis sorrir para ela. A mulher se aproximou de novo e perguntou-lhe com voz doce: “Você pode dirigir?”. Ele fez que sim. O corpo tremia-lhe menos. No respirar acelerado sentiu por um instante um cheiro de— Cheirou forte num intento de sentir o perfume – de voltar à realidade – mas sentiu só a gasolina. Ainda de pé onde a carteira caiu, estendeu os dedos para acenar à mulher, que ao passar pelo Chevrolet deu-lhe tchau desde a janela de seu carro vermelho. Vestida de festa, pensou ele. Nesta hora. Neste posto. Pensou que era um anjo. Perguntou-se se era um anjo. E pensou se a filha não poderia ter sido um anjo também.

Será que te amei o bastante, filha? Pai, tu sabe. Foi na última conversa telefônica, no dia do seu aniversário, seis meses atrás. Bastante era quanto? Quão grande deveria ter sido seu amor, se depois ele ia sumir por cinco anos? Que valia isso? O que valia ele? Inalava ar e o soltava rápido, sentia o coração bater na pele. Ouviu sua voz, rindo ao telefone: Pai, daqui a dois anos todo o mundo estará louco! Aos poucos foram aparecendo mais luzes traseiras, feixes verticais que perdiam-se no céu, estrelas vermelhas que o perturbavam e o obrigavam a piscar. E a voz dela em sua cabeça: O amor não é— O amor não é nunca ambivalente. E ele a ruminar: amor de pai, amor de mãe, amor de amigo, amor de— Por que o homem tem de ser de material tão sensível?

As ruas da cidade pareceram-lhe espectrais. Exceto por algum ou outro carro e o movimento cromático dos sinais, parecia que ninguém morasse lá – que uma debandada, enquanto ele estava fora, tivesse se produzido, deixando só fantasmas. Viu figuras escuras nas ruas esvaziadas, figuras contra paredes ora sujas, ora rachadas, banhadas em um amarelo de necrotério de hospital. Sentiu de novo o apito ouvido ao telefone – ignorava quantas horas atrás: quando era dia; e forte, como sempre desde que elas partiram e ele ficou na praia, a ameaça da loucura. Se ela não estivesse lá, deitada em sua cama, em seu quarto, com a mãe, as amigas, nada mais o salvaria. Ele, que quando achou já estar perdido, para não enlouquecer ou se matar, começou a pintar, sem ela não viveria. Não vai me beijar? Isso foi o que ela disse. Muito tempo atrás, no entanto parecesse sempre ontem. Encostada na porta do quarto do sótão, o único lugar da casa de cuja janela, por cima das dunas, dava para ver o mar. Ele nunca soube se ela estava perguntando. Nem na voz nem nos olhos acesos pôde adivinhar. Por que o homem é obrigado a—? Mas tinha certeza que tiveram coragem.

Quase não reconheceu a casa. Mudou a cor da fachada. A porta, larga e alta, antes era de madeira, não de aço. Alguém dormia nos degraus. Tanta coisa havia mudado. Desceu rápido do carro. Já não tremia, nem suava. De regresso à casa onde morou, subiria esses degraus, sentiria de novo o carpete nos pés, apalparia as paredes. E ela estaria na cama, no centro de tudo, sorrindo para a mãe. Olhou para cima e não viu luz nas janelas. Deu mais uns passos e enxergou: a figura nos degraus da porta, com os cabelos no rosto, diminuída no interior de um abrigo. A mulher ergueu a cabeça e pestanejou; pestanejou várias vezes em frente ao homem de cabelos grisalhos. Sorriu e chorando disse: “Meu amor, amor meu”. Então ele soube. No entanto, perguntou: “Onde ela está?”. “Ninguém parou, ninguém parou, ninguém parou”, a mulher disse. “Onde ela está?”. A mulher soluçava, abraçava-se a ele, golpeava-o com raiva no peito, no casaco, colava-se a ele.

Foi de táxi ao IML. Um homem de guarda-pó o recebeu na entrada. Explicou-lhe que Débora havia sido baleada às seis da tarde, ao sair da faculdade de carro. Que os assaltantes fugiram. Contou-lhe que o namorado morreu na hora, na direção; que o carro rodou cem metros, até bater em um poste de luz. “Sua filha Débora”, o médico disse, “conseguiu abrir a porta e sair. Um grupo de vizinhos tentou socorrê-la no chão. Pediram para outros carros pararem e a levarem para o hospital. Senhor? Na ambulância, ela disse: Ligue pro meu pai. Não resistiu. Agora, se quiser entrar na sala. Talvez queira levar uma lembrança”.

7 comments:

Anonymous said...

iéeeechhh. toc. toc.

clap!clap!clap!clap!clap!clap!clap!clap!clap!clap!clap!clap!clap!clap!clap!clap!clap!clap!clap!clap!clap!

Roger said...

:o) =) ==)

Ana Kessler said...

Tirando o que está imperfeito, o resto está perfeito. Mas o que está imperfeito é tão imperceptível (risos). Roger, tá TRI BOM esse teu conto. Top one. Como você consegue escrever tão bem em português? Quase chorei no final. O primeiro parágrafo está something else, the best ever. bjim

Roger said...

Ai Ana! Fiquei com um sorrisão bobo quando li seu comentário hoje de manhã! Nem sei o que dizer! Obrigadão! Nós precisamos desses elogios, né? Para não ficar um dia pensando que aquilo está ótimo, e no seguinte que está uma b****! Mas tem muitos (muitas!) TOP nessa aula, não acha? (Eu sei de uma... :p) E isso é muito bom! Beijo! (Adorei esse tirando o que esta imperfeito, o resto está perfeito :)))

Anonymous said...

hey bro'!!!!!!!!

bueno, bueno, ja veig que entre escriptors us feu la pilota una mica no? jejeje és conya!!!!! però és que entre la gent del cine sempre rajem... no sé pas per què!!!!

el conte m'ha molat molt!!!! Ens erio, és la hòstia, com diria el cruyff gallina de piel!!!!! No sé,, aquí no et faré una crítica detallada, però està de puta mare, m'ha molat molt, només hi ha una cosa però... no deies tu que només es podia escriure del que es coneixia? com t'ho fas? com pots escriure d'un home a qui li maten la filla!!!!!!! hi ha alguna cosa que no ens has explicat?... jejeje

Bueno, lo dicho, que m'hi he ficat, que he entrat en l'estat d'ànim del tiu, que el final és de crack, que m'ha emocionat i que a veure si fas el favor de reunir 4 o 5 contes com aquest i fas un llibre. Jo te'l publico!!!!!!!!

uri

PD.- aixòns sins, semprens fans contens tristons... per quan una comèdia?

PD2.- Sí, el teu portuguès é muito bom, però jo ara ja ho entenc tot quan ho llegeixo!!!!!! JAJAJAAAAA

Roger said...

Gràcies Uri!!!! El teu elogi em va animar molt ahir, em va servir per acabar un c*** d'informe de Cruïlla (espero que ningú de C. llegeixi això...). I ara m'ha tornat a animar quan l'he tornat a llegir. (Ja veus que em dura poc l'efecte dels elogis, ho haig de tractar amb la dallonses.) No sé què dir, I'm speechless, com diuen els esportistes tontos. Ara el problema és que no tinc dos contes més com aquest. Potser acabaré publicant només aquest a l'antologia... Imaginació, bro. El que vaig fer va ser intentar posar-me en la pell d'aquest home, i pensar què li podria passar pel cap en una situació així. Més que què pensaria, què sentiria. Després és qüestió d'anar a dormir, i abans de clapar vénen les idees, a vegades les frases senceres. És una mica de vagos, això d'escriure. Els humoristes diuen que fan mini siestas per tenir les millors idees, no? Intentar posar-se en la pell d'un personatge ha sigut... chulo, muy chulo, com diria la Gabriela imitant-te. I poder crear una història no autobiogràfica també. Em pensava que no en sabria. Però no me'n demanis més tan aviat. Volies un conte, pues yastá! Ara en vols cinc? Nonono! Perquè un altre dels secrets és, com diu la J. Venegas a la cançó, i no és broma, això és bàsic, "frenar el ritmo e ir muy lento". Pensar que tens tot el temps del món... Però no t'ho prenguis al peu de la lletra i roda el curt d'una vegada! Huauahua! :D

Anonymous said...

hey bro'

sí, ja veig que això de ser escriptor és una feina que poc té a veure amb un rodatge d'una peli (3 mesos a tope, un sol dia de descans a la setmana, jornades de 12 hores amunt i avall i clar, quan vas a dormir no et vénen ni idees ni frases, sinó son...), però per això sempre heu viscut en aquest espai entre la bohèmia i el patiment, entre el burgès ric que ho fa peerquè pot i el marginat que no menja perquè vol!!!!!

aiiiiii, així és l'art de la literatura i em sembla molt bé, però espero que siguis capaç de fer 4 o 5 contes com aquest en (let's say) un anyet? un i mig? temps suficient crec per tenir suficient material per fer un llibre cagumcony!!!!! Qeue no és el que voleu tenir els escriptors? llibres? cagumcony, jo no entenc res.

Pel que fa a la imitació que fa de mi la gabriela és "guay, muy guay!!!!" jejeje... i he de dir que té raó!!!!! Tinc 28 anys i encara dic paraules que no estaven de moda ni quan anava a l'institut!!!!!!! JAJAJAAAA Per això he acabat fent publi, I guess...

I pel que fa al curt... no me'n parlis germà, estic desolat. LA cosa avançava, a poc a poc, però avançava... i ara de cop porto un parón de 3 semanes perquè he hagut de rodar 4 spots en 3 setmanes, amb uns argelins, amb uns alemanys i amb uns madrilenys i clar, entre dies de rodatge (porto almenys 5 dies en 2 setmanes aixecant-me abans de les 6:30!!!), hores de feina (ahir de 8 am a 10pm, abans d'ahir de 6:30 am a 9:30pm...) i tot no he fet res... però seguirme lluitant, qui sap què arribarà primer, si el emu curt o el teu recull de contes!!!!!!

uri