Tuesday, April 13, 2010

Capítulo 30 (novo rascunho)

Na quinta-feira, andei a passo normal até o metrô, resolvido a descer normalmente as escadas, pegar o trem rumo a Manhattan e refazer velhos caminhos de 2000. E Anne estava lá, seu corpo perfilado diante de uma viga vertical, com seu casacão aveludado e uma boina em vez do gorro de lã, sua cabeleira cheia. O trecho central da compridíssima plataforma (de uma entrada não se enxerga a outra) está sempre vazio; os passageiros se concentram do lado de um dos dois acessos. Na entrada de Bedford não havia mais de quinze ou vinte pessoas. Quando a vi, fiquei parado, nervoso, sem atinar no que poderia lhe dizer - três dias desejando encontrá-la e na hora não saber. Reagi quando ouvi muito ao longe o rumor que antecede à chegada do trem. Então me aproximei dela, dei-lhe um oi de uma certa distância, um oi alongado, como se eu fosse um estranho e ela pudesse se sobressaltar. Anne me cumprimentou de volta, surpresa de verdade.
-Senhora psicóloga - eu disse, num tom entre reverente e provocador (do catálogo dos tímidos).
Ela me olhou processando as palavras, como se eu tivesse errado a profissão.
-Senhor escritor - retrucou. Respondi puxando os cantos da boca por uma fracção de segundo.
-Estava pensando em você - eu disse, sem querer ser levado a sério. - A caminho do trabalho?
-Ãhn ãhn. - Anne adotou uma postura mais erguida, que nela parecia natural: - E você?
-Vou dar uma caminhada. Depois volto para o café.
-Com este frio?
-Com este frio. Não parece que o tempo vá mudar. - Eu ia dar mesmo uma caminhada, só não podia lhe dizer à procura de quê.
-Está bem, vai lhe fazer bem.
Fiz cara de não entender.
-Caminhar. Faz bem para todo mundo - Anne disse.
Assenti com a cabeça, de lábios fechados. Talvez estivesse pensando em seus pacientes.
Quis perguntar-lhe sobre eles. Saber que tipo de psicóloga ela era. Saber se seus pacientes eram as únicas pessoas que ela via. Imaginei-a no consultório e de noite em casa, revisando as anotações do dia. Sozinha.
-Sabe? - eu disse sorrindo. - Sempre quis ter uma psicóloga.
Anne me fitou estreitando os olhos. Sorriu também:
-Psicóloga mulher? - Não me deixou responder. - Qual é o problema do senhor?
Solidão, o mal do século (mas, que século?), ansiedade, depressão.
-Writer's block - eu disse.
-Ah, isso. - Dor de cabeça teria causado um efeito maior.
Ela olhou em volta, inclinou-se para mim, sussurrou:
-Eu não trato amigos.
Senti seu sopro na orelha, me arrepiei.
-Também não trato vizinhos - logo emendou.
O trem estava entrando com grande estrondo na estação.
-Isso é norma, está nos livros?
-É facultativo - ela disse, levantando a voz.

Entramos juntos no vagão, sentamos juntos. Anne não tirou o casaco, nem as luvas, só a boina. Pude ver de perto seus cabelos, senti um cheiro adocicado bom. Diferente do verão, quando o calor na plataforma é sufocante e as pessoas esperam ansiosas pelos trens, agora o frio não dá trégua, é tão intenso aqui abaixo como na superfície, ou então demora muito para sair dos corpos. Com todos os passageiros agasalhados, os vagões parecem mais lotados do que realmente estão, e as pessoas, volumosas, ficam coladas as umas às outras, criando cadeias ininterruptas de impermeáveis, felpudos, couros forrados, lãs. Através de camadas e camadas de tecido, sinto o braço e o ombro de Anne, que tem os antebraços em cima do bolso, uma mão ancorada na outra. Eu sento direito, tentando não apertar o jovem corpulento do outro lado, que usa fones de ouvido por cima de um boné com viseira de time de futebol. Minha vizinha não fala. Olha para o alto, eu olho também: os anúncios de um filme de terror adolescente e do aquário de Coney Island, com a foto de um tubarão mostrando as mandíbulas. Ouço o ruído pneumático, intermitente do deslizar sobre os trilhos. O silêncio no vagão só não é constrangedor porque é compartilhado por pessoas igualmente sonolentas ou entediadas.
-Problemas com sua múmia, então? - Anne diz, baixinho.
-Sim. Com seu namorado, mais bem. Ele é quem sabe da história. Eu só posso conjeturar.
-Não é esse o trabalho do escritor?
Anne gosta de alfinetar, eu gosto de aproveitar para contemplá-la. Usa brincos de aro grande prateados, batom suave nos lábios. As maçãs do rosto, proeminentes, dão mais vigor ainda ao seu olhar.
-Talvez. Mas quem diz que eu seja.
Anne reprime o riso. Logo diz:
-Procure ele.
-Está preso em Arequipa.
-Ele está preso? - Deixa os lábios entreabertos, os dentes brancos à mostra.
-Num sanatório.
Resumo para ela o que Alberto R. fez no museu. Falamos tão baixo que parecemos estar conspirando. Não faz mal.
-Escreva-lhe - ela diz.
-Escrever o quê?

De pé, uma mulher lê a New Yorker dobrada, tira a luva para virar a página. Um homem lê um romance de Joseph O'Neill que eu vi em algumas livrarias, que ganhou um prêmio importante. Uma outra mulher, também de pé perto das portas, prende a atenção de Anne, que acompanha o diálogo mudo entre ela e a filha. A menina, de uns cinco anos, está sentada à nossa frente, inquieta, o rosto tristonho. Dá mostras de querer se levantar, juntar-se à mãe ou ceder-lhe o assento. A mulher parece muito cansada, está com olheiras. Faz uma careta como que agradecendo e um gesto para que a filha não saia do lugar.
-Deve ser difícil, reviver uma morta - Anne diz, de modo insuspeitado. Às vezes, aprendi com J.-P., há mais informação no tom do que nas próprias palavras ditas. E ela diz isso com uma melancolia que espanta.
-Você não acha? - ela diz girando de repente para mim. Seus cabelos esvoaçam e uns fiozinhos acariciam meu nariz.
-E fazer com que alguém se apaixone por ela...

O trajeto no segundo trem é curto, a travessia subterrânea do rio. Ambos descemos na estação de Union Square. Penso em inventar uma destinação ao norte, mudar o passeio. Mas desisto. Anne, ao fim e ao cabo, vai trabalhar. Eu talvez também. Despedimos-nos num cruzamento de galerias (ela me estende a mão), os únicos parados em meio ao turbilhão. Ela segue em direção Uptown. Quando já está de costas, lembro:
-A música que você escuta, o que é?
Ela não se volta.
-Anne!
Ela vira o rosto apenas o necessário, o instante justo para dizer:
-É brasileira!

Saio do lado da praça. Ao meu redor, as pessoas continuam a andar depressa. Logo as ruas desta parte da cidade ficarão desertas. Os empregados não deixarão seus postos até o fim do expediente (não sairão nem para almoçar); os estudantes da NYU se encerrarão em suas respectivas faculdades. Atravesso até a loja da Virgin para tomar o café da manhã. Faltam cozy cups em Manhattan. Deve havê-los, escondidos em ruazinhas do East ou o Greenwich Village; de resto, só há Starbucks, lojas de redes de lanchonetes, cafés de livrarias ou de museus. São mais das 9 h e o local está vazio. Um segurança está dentro, resguardado, próximo à porta; uma moça espera atrás do balcão, fazendo nada. Ela tenta ser amável, recomenda-me un sanduíche. Está com sono, não consegue segurar uns bocejos. Dou uma olhada nas revistas. Pego um livro no primeiro expositor da loja, no limite entre esta e o café: um livro de graffiti e outras formas de arte urbana, que folhe-o enquanto como. Quase todas as intervenções são políticas, ataques diretos ou irônicos às guerras de Bush e Blair. Talvez seja o máximo que se possa fazer. Esses líderes não ficarão envergonhados por serem comparados com Hitler ou retratados com sangue jorrando das mãos; mas melhor essa revolta pública do que xingá-los quando aparecem satisfeitos na TV - como fazia minha avó, jogando o corpo para a frente, com risco de cair de sua cadeira de braços ou ter um ataque de hipertensão. Música brasileira. O que é que eu sei? Poderia procurar aqui na loja. Ou melhor, perguntar a Anne. Seria a maneira. Outra seria contar-lhe a história de Alberto R., a quem poderia tentar escrever uma carta (por que não) nessas horas infrutuosas no café.

7 comments:

Anonymous said...

Olá Roger!
Gostei e voltei. Muito bom o Cap. 30. Mas confesso que, antes de o narrador "voltar à superfície" (penúltimo parágrafo, estava mais ... instigante.
Parabéns!
Abraço

Roger said...

Olá! Que bom que voltou! :)

Pois é... Muito obrigado pelo comentário, eu já não gostava muito dessa parte, agora tenho certeza, não diz muito sobre a história, vou encurtá-la.

Obrigadão, abraço!

Anonymous said...

Olá Roger
Achei ótima a eliminação da Condoleezza, do Bush, dos possíveis malucos e dos suicidas o último parágrafo.
Outra coisa, espero que não me leves a mal,mas utlizas a palavra "comprazidos", que é pouco usada no português. Não seria o caso de "satisfeitos"?
E acho que tem uma nebulosa aqui nessa passagem: "é tão intenso sobre como sob a terra, ou então demora muito em (para) sair dos corpos." Talvez a preposição melho fosse "para" ao invés de "em"?
O mesmo com a preposição em "parece compartilhado, de (por) pessoas igualmente sonolentas ou entediadas".
Espero que não te aborreças com os comentários.
Abraço e bom trabalho.

Roger said...

Olá! :) Não te levo a mal, muito pelo contrário, te agradeço muito os comentários! Vou fazer essas mudanças agora. Abraço!

Anonymous said...

OK, Roger!
Bom saber que aceitas os comentários na boa porque a intenção também benigna.
(Xiiiii) E só agora percebi que fiz postagem em dobro Lamento, mas não sei como resolver. Podes eliminar uma?
Bom trabalho com o livro!
Abrazo
AA

R. Luiz said...

Adorei teu texto Roger... me fez lembrar um dia no ônibus aqui em SSA, uma conversa ótima com uma bela amiga.
Abraços

Roger said...

Obrigado Ronaldo! Legal ter despertado essa lembrança... Em breve lhe escrevo um longo e-mail! Abração!