Wednesday, August 26, 2009

As nuvens, de Juan José Saer

Li em duas sentadas este livro de Juan José Saer, o segundo "anti-Borges" (o primeiro e mais querido é, para mim, Manuel Puig). Lendo o início, esperei uma obra mestra. Talvez não o seja, mas é um romance muito bom. O assunto, a viagem de um médico alemão, com uma caravana formada por índios, soldados e prostitutas, para levar cinco loucos desde uma aldeia cem léguas ao norte de Buenos Aires até uma nova clínica psiquiátrica fundada por ele e seu mestre, com "métodos novos, mais humanos". O tema, a relatividade da loucura. E a loucura de se aventurar pelo pampa - que, descrito por Saer (a história se passa no início do século XIX) é o próprio inferno. O narrador é o médico, mas neste trecho inicial, que me maravilhou (e que agora, ao transcrever, achei proustiano), o autor se refere em 3a pessoa a quem encontra o manuscrito da viagem, nos dias atuais - o romance é de 1997; Saer morreu em 2005. (Trad. de Heloisa Jahn.) (Estou lendo autores argentinos e uruguaios em português, quem diria. A tradução é muito boa, mas seria legal que livros de Buenos Aires estivessem à venda aqui; estamos tão perto...)


[...] A casquinha dupla de creme e chocolate que se prepara para tomar será seu único almoço, e se esperou até tão tarde - já são quase duas e meia - para sair do escritório e comprá-lo é porque decidiu que o sorvete terá a função de permitir que fique sem comer até a hora do jantar. O calor é, sem dúvida, a causa principal de sua frugalidade, mas uma espécie de estoicismo que poderia ser considerado esportivo, produto não de uma regra que aplica a toda a sua vida, mas capricho do dia, confere a essa estratégia física uma vaga coloração moral. De modo que se sente bem durante alguns segundos, contente, leve, sadio e, apesar de já não estar longe dos cinqüenta, imagina contar com um futuro - imediato e remoto - claro, direito e vívido, como um tapete vermelho estendido desde a ponta de seus pés até o infinito. Quase ao mesmo tempo, o rigor do verão, o tumulto da rua, os gases escuros emitidos pelos automóveis e que envenenam o ar puxam-no de volta para uma certa medida de realidade, para esse meio-termo do estado de espírito situado a igual distância da angústia e da euforia e que aqueles que imaginam conhecê-lo relativamente bem, e ele próprio, mesmo quando por distração se deixa convencer por eles, chamam com segurança injustificada seu temperamento.

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