Monday, December 13, 2010

Eu sou um grande mentiroso 2

Terminei de ver o documentário sobre Fellini. O vi em duas partes, não consigo ficar muito tempo quieto em frente à TV (ao laptop, no caso). Nesta segunda parte achei mais trechos da entrevista interessantes, que anotei (sobre o tempo, o imaginado e o real, a criação artística, as mulheres), e um belo diálogo de 8 1/2 que transcrevo também (quando eu era adolescente, achava que esse filme de que os adultos falavam era sobre dois palhaços, Otto e Mezzo... :o). Vale a pena dizer: no documentário, o ator Donald Sutherland (Il Casanova) fala de Fellini como uma pessoa autoritaríssima e até cruel - tipo Picasso, citado por Fellini como fonte de inspiração.


"Não acho que seja possível definir ou desenhar uma linha divisória entre o passado, o presente e o futuro, ou entre uma coisa imaginária e a memória de alguma coisa que realmente aconteceu. Não acho que qualquer um que escolheu essa profissão ou foi chamado para contar histórias possa distinguir isso. Do momento que ele cria seu pequeno universo essa criação é absoluta. É um universo completo que também inclui o tempo, não só pelo espaço territorial ou a descrição dos personagens. Até o tempo é inventado."

"Meus filmes ficam prontos porque eu assino um contrato. Recebo um adiantamento que não quero devolver e tenho que terminar o filme. Não acredito na total liberdade criativa. Um artista que tiver liberdade criativa ficaria propenso a não fazer nada. O grande perigo para um artista é a liberdade total."

"Não ter fé é difícil. E uma maneira de se limitar, colocar obstáculos em sua frente. No entanto, ter fé acho que faz parte desse sentimento vago que mencionei, que para mim é uma nota fundamental na qual eu me reconheço: a expectativa. A fé também é uma forma de expectativa. Não quero dar uma conotação mística para essas afirmações. Quero dizer um estado da alma, uma impressão no dia-a-dia de que o sentimento de expectativa nunca me deixou. Mas se você perguntar o que eu espero, você irá me complicar."

"Uma mulher é o planeta desconhecido. A parte à qual o homem quer se unir para encontrar um complemento, para completar o círculo, para encontrar a integridade, a totalidade. Justamente por isso, é a parte desconhecida dele. É o lado escuro. Assim ela o atrai e o assusta."

"Projetamos na mulher, eu acho, um sentimento de expectativa, a revelação de alguma coisa, a chegada de uma mensagem. Como a personagem de Kafka que esperava uma mensagem do Imperador. A mulher pode ser a Imperatriz que, há milhões de anos, mandou essa mensagem que felizmente nunca chegou. Porque eu sinto que o que faz a vida valer a pena é a espera dessa mensagem mas não a mensagem propriamente dita."

"A longa história que um artista conta através de suas obras é uma busca em muitos níveis diferentes. A busca de um estilo, de coerência, do que é essencial, de um tom mais direto, mais espontâneo, de ser mais sincero, menos conceitual, de viver a própria expressão da maneira mais direta. Ou seja, uma busca da parte mais autêntica de você mesmo."

"É evidente que um autor, um artista, se abastece essencialmente dos traumatismos psicológicos, as injustiças, as cicatrizes de sua existência psíquica. Há um aspecto benéfico da neurose que capacita alguém a estabelecer um depósito, um armazém, um tesouro encontrado de onde pode extrair amplos recursos."


Este diálogo do filme 8 1/2, incluído no documentário, é entre Guido (Marcello Mastroianni), alter ego de Fellini, que faz o diretor e ator do filme dentro do filme (um diretor com bloqueio criativo) e Claudia (Claudia Cardinale), que interpreta uma atriz desse filme que não sai (Claudia Cardinale: a única atriz "antiga" por quem já "me apaixonei"... :)



Claudia: No fundo é sua culpa. O que você espera dos outros?
Guido: Por quê? Você pensa que eu não sei? Você está um pouco chata.
C.: Ninguém pode dizer nada! Você está tão engraçado com aquele chapéu, feito de feno velho! Não entendo: essa menina poderia mudar a vida toda, ele renasceria, e a rejeita?
G.: Porque ele perdeu a fé.
C.: Ele não sabe como amar.
G.: Uma mulher não pode mudar um homem.
C.: Ele não sabe como amar.
G.: E não quero contar outra história que é uma mentira.
C.: Ele não sabe como amar.
G.: Desculpe, Claudia, tê-la trazido aqui. Perdão.
C.: Você é um impostor. Então não tem um papel para mim?
G.: Você está certa. Não tem um papel. E nenhum filme também. Não há nada, em lugar nenhum.

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