Sunday, November 06, 2011

La piel que habito, de Pedro Almodóvar

Tá, vou dar minha opinião sobre o filme de Almodóvar, tentando não estragar a história a quem não o assistiu, sem me puxar muito (porque daqui a pouco começa o jogo do Espanyol, que quero ver) e sem nenhuma intenção de irritar meu irmão Uri (que, mesmo assim, talvez fique irritado). O filme não é uma obra mestra, mas é a obra de um mestre. Não é uma obra mestra, nem ganhará prêmios, porque é um filme de gênero: como filme de gênero (de suspense) é uma obra mestra (as poucas críticas positivas veem no filme uma reflexão sobre a identidade individual, ou a identidade sexual, etc., grandes conceitos: mas não, eu acho que é "só" uma história de suspense, ou terror psicológico). [Escrito dois dias depois, com o filme deixando pouso: ele é, sim, também, sobre a identidade individual e sexual.] Em Álmodovar eu confio, sempre; com ele eu me deixo levar onde ele quer. Por isso eu me senti angustiado, por isso esqueci que estava assistindo a um filme e esqueci, inclusive, que estava numa sala cinema. A amiga com quem assisti não conseguiu: talvez porque pensou demais, ou por querer se defender do que via, manteve uma distância, e na saída me disse: "isso [que a história conta] ainda não é possível" (esse "ainda" também me angustiou, hehe); entretanto, ela conseguiu pensar sobre o estar num outro corpo. Os críticos espanhóis não têm a boa fé da minha amiga, ou a minha: eles, simplesmente, não toleram, não suportam o sucesso internacional de seu conterrâneo, e parece que vão ao cinema não de olhos e mente abertos, senão com uma caderneta e uma caneta, prestes a anotar o primeiro erro que consigam enxergar.

O caso de Carlos Boyero, crítico de cinema do El País, é patológico. Ele tem fobia a Almodóvar, ou almodovaritis; talvez seja um homossexual não assumido, ou teve alguma experiência traumática na adolescência com algum travesti, sei lá. Em 2009 já escreveu (ou já fez, porque ele nem sabe escrever - desconfiem de qualquer crítico de cinema ou literário que não saiba escrever) uma crítica destrutiva de Los abrazos rotos. Almodóvar não dá mais bola, mas esse ano escreveu uma carta ao jornal lamentando que tivesse um crítico tão ruim; pedindo críticas cinematográficas não necessariamente positivas, é claro, mas sim inteligentes, razoadas, escritas sem preconceitos. (El País tinha o melhor crítico de cinema da Espanha, Ángel Fernández Santos, mas ele morreu; depois houve mudanças, colocaram um tal Borja Hermoso, muito inepto, como editor de Cultura, e esse Hermoso colocou seu amigo Boyero, outro inepto, como crítico.) Boyero não só tem preconceitos, quanto os expõe sem nenhum pudor no próprio texto. A crítica de La piel que habito começa assim: "En la estratégica, sofisticada y abrumadora campaña de promoción con la que Pedro Almodóvar arropa cada una de sus pretendidamente trascendentes películas, desde que surge el proyecto hasta su estreno comercial, sin prisas y sin pausas, administrando implacablemente el tipo de publicidad que necesita en cada momento su mimada criatura...". Mais adiante, escreve: "No he tenido oportunidad de revisar esta película desde que la padecí hace varios meses en la última edición de Cannes. Recurro por ello a la hastiada memoria". E finalmente se refere ao diretor com a expressão "este hombre" ("las últimas obras de este hombre"). Enfim, eles passarão, eu passarinho.

Antonio Banderas está perfeito em seu papel de cirurgião plástico, e Elena Anaya, como vítima, também. A crítica espanhola viu neles (especialmente, nele) inexpressividade, hieratismo, atuações ruins; a crítica norte-americana, mais inteligente, percebeu que "Mr. Banderas and Ms. Anaya are excellent, though neither has been directed to seduce like some of the director’s past memorable characters". É claro que não. Ele não vai seduzir ninguém: é um cirurgião louco, obsessivo; e ela também não, pois está sofrendo a pior tortura. A casa onde tudo acontece, uma mansão linda, decorada com obras de arte, com a mobília de que Almodóvar gosta, muito colorida e tal, é mais angustiante (OK, talvez eu me angustiei demais: a crítica do NYT fala em "an air of unease", "an unsettling vibe", algo mais leve que a angústia), por exemplo, do que o casarão gótico de Los Otros, de Amenábar, e isso só um mestre do cinema consegue (entretanto, o filme remete ao melhor Amenábar, o de Abre los ojos). Como também só um mestre consegue mexer com o espectador com um simples plano de umas mãos abrindo o envelope onde estão as luvas de látex de um cirurgião e colocando-as (não há cenas do cirurgião cortando em fatias a carne da mulher, não precisa). (O mais incrível que ele consegue eu não posso dizer sem entregar o filme - é muito sutil, está nos olhos e o movimento do corpo de Elena.) O Tigrinho, uma personagem (brasileira!) que aparece na primeira parte, é um fofo, um cara engraçado e, ao mesmo tempo... o mais violento da história. Há muitos tipos de violência no filme. Mas a história também tem momentos de humor, frases para rir ("quiere un coño!"; "es que la tiene muy grande"), cenas muito engraçadas (a dos vibradores) e até slapstick, necessários para o espectador não sufocar. E logo há frases daquelas típicas dos filmes de Almodóvar, que ficam ressoando enquanto a história é contada, dando-lhe um sentido ainda não desvelado (e que depois ficam para sempre na memória): em Todo sobre mi madre era aquele "Un tranvía llamado deseo ha marcado mi vida", dito por Cecilia Roth no início; aqui é "La has hecho demasiado parecida con ella", dito por Marisa Paredes quando o espectador ainda não sabe a quem esse "ella" se refere. O filme tem várias cenas inesquecíveis (eu vou lembrar deste filme, bem mais do que de Los abrazos rotos ou inclusive Volver), como a do estupro terrorífico da filha do cirurgião, ou essa da preparação da cirurgia que já contei, ou a cena final. O final é um happy end terrível (e com isso não estrago nada, porque quem já viu um happy end terrível?). Por último, mesmo para quem não goste de Almodóvar, ou para quem não se deixe levar pela história, o filme é uma aula de cinema: o diretor usa todos os recursos da arte, montagem, fotografia, música, saltos no tempo (com o tempo ele faz o que quer), etc. com uma naturalidade assombrosa. Os únicos defeitos que eu vi estão em algumas cenas em que o cirurgião fala, fora de sua mansão, com seus colegas, que são filmadas sem muita preocupação, com diálogos simples e uma fotografia que difere da do resto do filme; é uma pena, parece que Almodóvar não está nem aí para essas cenas, mas é que o interesse da história também não passa por elas.


PS: Ah, esqueci de dizer e é importante (surpreendente, eu diria): nos filmes de Almodóvar, e neste também, as personagens TRANSAM. Não como nos de quase todos os diretores do cinema atual, onde eles ficam um em cima do outro e só.

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