Sunday, December 06, 2009

Capítulo 17 (novo rascunho)

Hoje tudo se conjugou para levantar meu ânimo. Na rua, fui cumprimentado com ênfase por um homem de meia-idade que passeava com dois cachorros (o bairro não é tão frio e deserto, ao fim e ao cabo). O sol saiu, depois de vários dias cinzentos. Passei meia hora acordado na cama, embalado pela música que, agora eu sei, vem do andar de cima, que aos sábados e domingos toca também de manhã e que já não me incomoda, ao contrário, começa a me agradar. A garçonete que me serviu a fatia de torta, escolhida no balcão pelo visual, piscou-me um olho. Bendito sábado! Sei que não por isso, é claro, as frases virão; não por isso vou conseguir escrever. Por que não me dar uma folga, então? Afinal de contas, sábado não é dia de semana. Afinal de contas, meu desejo inconfesso é encontrar Anne, deixar que Anne me encontre. Recostado numa das poltronas, de frente para a rua, leio o jornal. No início, com atenção relativa, pois a cada figura que se aproxima pela calçada olho por cima das páginas para ver se é ela, confiado em que, num momento ou outro, será.

No jornal está tudo errado. A crise, quando não tratada diretamente, ecoa nas notícias de todos os cadernos. Na cidade se perdem empregos em ritmo acelerado. Os teatros reduziram o número de apresentações, as pessoas assistem cada vez menos aos eventos esportivos e ao cinema. Os donos de restaurantes se lamentam, têm de reduzir pessoal. Só enchem os Starbucks e os cafés da rede de livrarias Barnes & Noble, onde a gente fica por horas sem ter de gastar um centavo. Os mais prejudicados, os trabalhadores imigrantes, voltam aos seus países, e os que não o fizeram (entrevistados no jornal) esperarão um ou dois meses, ver se a situação melhora, e, caso contrário, também vão voltar. Em Miami, famílias inteiras perderam suas casas e se instalaram embaixo de pontes, com a aquiescência da prefeitura, que parece não ter uma outra solução a oferecer. Na Califórnia, criam-se comunidades à beira de estradas, onde pessoas moram em seus carros ou suas tendas de acampamento. Os membros do gabinete do novo presidente Barack Obama foram anunciados esta semana. Leio com curiosidade seus perfis. Dizem-se esperançados. Valentes, os herdeiros deste desastre! Terão de reconstruir, ou reinventar, o que um analista chama, em primeira página, de país "não só economicamente falido". É irônico: no som toca "Perfect Day". Mas é, é um dia bom para mim. E seria fantástico, um dia perfeito, se Anne aparecesse agora. A música talvez me desse a coragem para convidá-la a passear, falasse por mim. Pode ser que também trabalhe aos sábados.

Se ao menos Kate estivesse aqui. Sempre pensei que iria reencontrá-la ao voltar: a única amiga que ficou na cidade, contratada por uma editora logo que o curso acabou. Ela também perdeu o emprego. Por enquanto sua odisseia terminou. Com 18 anos, saiu do Havaí para se afastar da família. Estudou e se formou na Universidade da Califórnia. Considerou que a distância da família ainda era pouca e veio fazer o curso de edição aqui. Morou em três apartamentos, cada um pior do que o outro e cada vez mais longe do centro. Em suas cartas, sempre desenhava um croquis e descrevia o lugar. Por pequeno que fosse, convidava-me, escrevia que a gente se viraria no espaço que houvesse. O primeiro nem era um apartamento, era um quarto, no Soho. Tão pequeno que teve de comprar um beliche sem a cama de baixo para poder embutir a mesinha e o computador. Na área comum, as fechaduras não fechavam, as torneiras pingavam (por dias, a água quente do chuveiro não pôde ser fechada, tudo enchia de vapor); ratos se afeiçoaram por ela. Na mesinha, sob a cama, passou noites em branco, lendo originais, revisando provas. As dez ou doze horas trabalhadas na editora não eram suficientes - nunca são, ninguém consegue morar em Manhattan sem se entregar totalmente ao trabalho, nem os parasitas de Wall Street. A editora era prestigiosa, mas o salário era baixo, e não aumentava. Fosse isso pouco, os superiores aproveitavam sua docilidade de recém chegada, seu ar em aparência medroso, para alfinetá-la, atordoá-la, enchê-la semanalmente de trabalhos dos que ninguém poderia dar conta num mês.

Sua primeira mudança foi para o bairro de Greenpoint, no Brooklyn (para a mesma rua Bedford onde eu moro, só que quilômetros mais ao norte). Alugou um conjugado minúsculo, porém tudo para ela, onde cabiam uma cama, a mesa com o computador e um sofá-cama militar que ela encontrou na rua, para acolher os amigos de passagem na cidade. Greenpoint também se tornou caro demais. Então foi para um bairro mais pobre, onde a maioria da população era negra, e ela, de origem e feições asiáticas, sentia-se uma minoria entre uma outra minoria. As vitrines das lojas estavam protegidas com tábuas; predominavam os conjuntos de habitação subsidiada.

Em algum ponto entre tais mudanças, eu nunca soube exatamente o porquê, saiu da editora, abandonou para sempre o mundo editorial. Em certa ocasião, tendo sido relegada de seu gabinete para um cubículo, escreveu: "I no longer have a view, but the temptation to fling myself out the window is no longer there". Apesar das dúvidas, não perdeu a vontade de permanecer na cidade. Fez um novo curso, de documentação; trabalhou, com maior prazer, embora também exigida até o limite, num programa de debate político da televisão pública. Quando a série de debates terminou, ficou sem nada. Há poucos meses foi para Chicago, morar por um tempo no apartamento de um amigo, companheiro na época de estudante na Califórnia. São as últimas notícias que eu tenho: Kate procurando emprego em Chicago antes de se resignar a voltar com a família, de ter de voltar ao Havaí, de onde sonhou em sair durante toda a adolescência.

2 comments:

Anníssima said...

Estou aqui na Lu, minha aluna, quero dizer, esperando a Lu, que está atrasada. Daí resolvi ler o capítulo 17, no computador da Lu enquanto ela não chega.

E o sentimento que eu fico é o mesmo que alguma outra pessoa já colocou aqui, é aquele chegar ao fim e pensar: "mas JÁ acabou??".

Quero mais!!!!!!!

:)

I need more!

:)

Beijão!!!

Roger said...

Vai ter maaaaaaaaaaais! :p =))))