Thursday, November 01, 2007

Uma canoa, um rio

Muito bem. Finalmente resolvi postar o conto que escrevi a semana passada e que hoje recebi de volta do professor.

Terceiro exercício do curso de criação literária da Faculdade de Letras da PUCRS. Estrutura inversa.


Para Gabriela.


Era uma vez uma mãe que levou um filho a uma bienal.
- Mamãe, o que é uma bienal? - o filho tinha perguntado.
- Uma bienal é um lugar cheio de obras esquisitas e modernas. Que nem um museu, só que muito mais divertido - explicou a mãe. - Você sabe o que é, moderno?

Mãe e filho chegaram a um dos armazéns que sediavam a bienal e encaminharam-se para um espaço chamado "Terceira margem". Era domingo, de manhã cedo, e, excetuando duas mediadoras, não havia ninguém mais.
- Olha - falou a mãe, chamando a atenção do filho para umas letras pretas, grandes, coladas numa parede branca.

A mãe leu devagar:
- O que aconteceria se...? Uma família aparentemente comum: um pai, uma mãe, um casal de filhos. Uma canoa. Um rio. Um pedaço qualquer do mundo. O que aconteceria se o pai entrasse de repente na canoa e não saísse, nunca mais?

A mãe olhou para o filho com os olhos bem abertos, a boca meio aberta também. O filho, quieto, continuava a olhar as letras pretas.
- O que aconteceria?
Do lado, na mesma parede, havia, penduradas em cordéis, que nem roupa a secar, filas de folhas escritas por crianças.

A mãe pegou a primeira e leu:
- "A família ficaria desnorteada e pensaria que foi castigo por alguma coisa". Você acha que foi castigo, filho?
O filho encolheu os ombros. A mãe leu outra folha:
- "O pai subiu na canoa em desespero por suas dívidas mensais".
E outra:
- "Joaninha, a filha mais velha, falou: Mãe, o pai enlouqueceu! Entrou na canoa, diz que de lá não sai nunca mais!".

- O que é enlouqueceu? - perguntou o filho.
- Enlouquecer é virar louco - respondeu a mãe. - Você acha que o homem da canoa enlouqueceu?
O filho olhou para ela pensativo, e falou:
- Não acho.
- Então o que lhe aconteceu?
O filho levantou os braços no ar:
- Não sei!
- Hmmm... Sabe que eu acho que eu sei?
- Sabe?
- Quer saber?
- Quero!
E mãe e filho sentaram-se em dois cubos pretos que não pareciam cadeiras.

Era uma vez um pai..., começou a mãe. E parou. Mas vamos começar pelo final, disse. O pai, que se chamava Alcindo, alimentava-se daquilo que a filha mais velha, Joaninha, deixava-lhe cada dia à margem do rio. Mas Alcindo tinha esquecido o nome da filha. Havia muito tempo não falava com ninguém, pois morava no meio do rio. E tinha esquecido todos os nomes, inclusive o seu.
O filho interrompeu-a:
- Que nem o vovô?
Que nem o avô.

Joaninha vivia sozinha na casa da beira do rio. O irmão havia casado e morava na cidade, e a mãe havia ido morar com ele anos depois de que o pai, segundo ela, enlouquecera.
- Mas ele não enlouqueceu...! - protestou o filho.
Nós sabemos isso, falou a mãe. Mas, sabe que o próprio Alcindo às vezes acreditava que sim?

Um dia, de manhã, Alcindo desceu à cozinha, onde a mulher estava. Reconheceu os cabelos e a roupa colorida dela, mas a cara, ele pensou, não era exatamente a cara de sua mulher. Assustado, saiu de casa, foi para a roça e não voltou até o anoitecer.
- E então foi para o rio? - perguntou o filho.
Escuta.

Alcindo desconfiava que isso fosse acontecer. Meses atrás, havia chamado a mulher de Maria, de Joaquina, de Noélia e de Lúcia, sendo que o nome dela, eu não lhe contei, era Isabel.
- Que nem o vovô faz comigo! - riu o filho.
É. Contigo e comigo. Nesse momento Isabel riu, como você está rindo. Achou que fosse uma piadinha do marido. Alcindo sorriu, mas logo subiu ao seu quarto e chorou.

Outras vezes ele esquecia o que fazia. Um ano antes do que acabei de contar, estando na roça, na pequena horta da família, foi pegar uma enxada no depósito. Queria cavar a terra e plantar berinjelas. Mas então, com a enxada na mão, não soube para que a precisava. E ficou lá no escuro, olhando uma atrás da outra o resto de ferramentas penduradas. Esse tipo de esquecimentos lhe aconteciam igualmente em casa.
- Eu esqueço coisas também.
Você é distraído, filho, sorriu a mãe. E adicionou: Todo o mundo esquece. É normal.

Não era a primeira vez. Alcindo adorava cuidar da horta e passear na roça, só que já não o fazia com a alegria habitual, porque não se lembrava dos nomes dos pássaros e das árvores. Para não esquecê-los, ideou uma estratégia: joão de barro para ele virou jô, muito mais fácil, bentevi virou bi. Os jequitibás converteram-se em ibás. E encurtou seu próprio nome para Al. Foi nessa época que mandou construir a canoa.

A estratégia era inteligente, serviu-lhe durante muitos meses. Mas depois aconteceu o que contei. E no dia em que não reconheceu a mulher, levou a cabo o que havia começado a planejar tanto tempo atrás, quando esqueceu para sempre o nome de todas as árvores. Despediu-se da mulher, despediu-se da filha, e remou até o meio do rio na canoa que havia mandado construir.

- E o que lhe aconteceu?
Ficou lá no meio do rio, longe e perto da família, e não voltou a falar. À noite, recolhia a comida que Joaninha, às escondidas da mãe, deixava à margem do rio. Isabel, que nada entendia, desesperou-se e acabou indo morar com o filho. Al, quando as águas cresciam, amarrava a canoa no toco duma árvore, numa ilha.
- Mas o que lhe aconteceu?

Um dia, quando já tinha esquecido quem era Joaninha, esqueceu também seu propósito. As águas baixavam tranqüilas, a canoa quase não se mexia, e Al olhou os remos estranhado. Não sabia o que eram, nem para que serviam. E as mãos dele, ao mesmo tempo, também perderam a força necessária para sustê-los. Deixou-os cair. Encolheu-se no fundo da canoa, que nem um bebê, deixou que o rio o levasse.
- Foi para o mar?
Foi levado suavemente até o mar.

Mãe e filho viram também - e nessa hora o armazém já estava cheio - uma longa parede pintada de verde e azul, representando a cor da terra e a cor do céu, que para os índios que moram perto do rio Uruguai são uma cor só. Depois, na loja de lembranças da bienal, compraram uma xícara. Saíram do armazém ao meio-dia.

Caminharam pela rua da Praia, subiram a rua General Bento Martins. Passaram pela confeitaria para recolher uma torta de maracujá. Aos domingos era costume almoçar na casa dos avós. Ele, homem alto, recebeu-os no portão. Deu dois beijos na filha e apertou a bochecha do neto. Chamou-os de Cristina e de Daniel. Que não eram exatamente seus verdadeiros nomes.

3 comments:

優次 (Yuji) said...

Escrius coses interessants i dones bones suggestions de lectura. Aviam si em passo per aquí de vegades xD

PS: Que ets català o m'equivoco? Home, el teu portuguès és perfecte! xD

Roger said...

Perfecte, perfecte... Encara no! :)

Sóc català, de Barcelona, però ja fa tres anys que passo més temps aquí, a Porto Alegre, que allà.

Tu estàs estudiant a São Paulo?

Passa sempre que vulguis! :))

優次 (Yuji) said...

La meva història amb el català és un xic llarga, va des de "Oliver y Benji" i "Bola de Drac" fins a "Shin-chan"... L'únic que et puc dir és que un dia vull anar a Catalunya a estudiar xD

Però vinga home, que escrius molt millor que molta gent que és d'aquí! No hi veig cap falta :D

Tant de bo el meu català fos tan bo com el teu portuguès...