Wednesday, May 21, 2008

Supõe-se que em uma ilha ninguém faz mal a ninguém

(Esta semana não temos aula de escrita criativa porque quinta é feriado, mas eu tenho conto para postar. É um conto que vai sair em uma revista, só espero que o editor não ache incorreto. Afinal, os leitores vão ser outros. Faço-o porque estou precisando me dar ânimos. Coisas chatas da faculdade :( - Ainda bem que meu time de basquete avançou às semifinais do campeonato espanhol. :p)


1. À tarde

– Você não vai dançar forró? – pergunta o motorista, virando-se para o estrangeiro. Sentado na traseira do buggy, agarrado à barra de aço que o separa da parte dianteira e coberta do veículo, o estrangeiro dobra-se sobre si mesmo para amortecer o impacto dos pingos na cara. – As garotas da ilha vão estar todas lá!
– Acho que não, com esta chuva! – ele grita.
– Mesmo com chuva! Elas gostam de dançar quando chove! Eu fui proprietário do Bar do Cachorro. Sei bem! E meu amigo aqui – o motorista assinala o co-piloto –, ele foi proprietário da praia!
– Da praia?!
– Isso! Da Praia do Cachorro! Nós somos todos ricos, na ilha! – diz o motorista, soltando uma gargalhada.

2. À noite

Ninguém ainda no Bar do Cachorro. Só música, música saindo de torres de alto-falantes a altura de dois homens. Embaixo do pórtico, no escuro, esvoaçando, uma camiseta listrada de mangas compridas.
– A gente vai vir se parar de chover – diz o homem, jovem, grande, negro, oferecendo uma cerveja ao estrangeiro. Seu nome é Cícero, e é o encarregado do local. Em um instante estão sentados como velhos amigos, um ao lado do outro, bebendo aos golinhos e escutando a música, tão alta que mascara o som da chuva. Um casal chega. De mãos dadas, atravessa o chão molhado da pista de dança e vá sentar-se sob um guarda-sol, longe do olhar deles.
O estrangeiro quer dançar forró, mas não aparece nenhuma menina. Cícero fuma e mira em frente, onde as luzes brilham no chão, onde as folhas se dobram nas árvores que separam a varanda e o mar. Cícero se volta para o estrangeiro e conta que já esteve casado e que tem um filho morando em Natal com a mãe. Não tem visto ele em anos, diz. Mas não parece estar desesperado por essa causa ou chateado com ninguém. Fala como se as coisas acontecessem inevitavelmente e tivessem que ser aceitas com um meio sorriso. Para dizer a idade do filho – sete –, ele se concentra e usa os dedos das mãos – ele usa os dedos para contar qualquer coisa. Depois fala sobre as meninas da ilha, as que lhe deram o apelido de Legal. Afirma ser um bailarino experiente, “pena que elas não estejam aqui”.

– Algum dia eu vou voltar – diz o estrangeiro antes de ir.
– Vá com Deus – Cícero responde, estendendo-lhe a mão –. Vai me encontrar sempre aqui.

3. Na madrugada

No caminho até a pousada, cansado de ter a roupa empapada pelo aguaceiro tropical, o estrangeiro tira a camisa e caminha sob a chuva. Agita a cabeça com fúria e olha para o céu. Cheira o frescor do ar, ouve milhares de rãs cantando. Vê uma sombra vindo no outro sentido, mas não vacila – supõe-se que em uma ilha ninguém faz mal a ninguém. Passa os dedos entre os cabelos. E imagina Cícero dançando: um homem negro, grande e jovem, de braços grossos e suaves, como os de um urso – tudo ritmo, os dedos dos pés polindo o chão – gentilmente envolvendo meninas até fazê-las desaparecer.

3 comments:

Anonymous said...

Belo conto, Roger! E gostei do título também.
"Cheira o frescor do ar, ouve milhares de rãs cantando." - Essa frase me fez lembrar à minha primeira ida à ilha. Eu não recordo quando foi, mas a ilha se chama Barra do Gil, e na época era super movimentada, cheia de jovens bronzeados, música, bares lotados... À noite, enquanto caminhavamos em direção à casa que ficamos, sempre os cantos das rãs nos acompanhavam. Minha prima Luisa morria de medo! rsrsrsr.
A gente respirava férias...

Um abraço,

Rose (cheia de saudade das férias) :D

Roger said...

Obrigado Rose! Mas você está sempre mudando o nome dessa ilha! Hahah! É outra ilha???? Não era a Ilha da Coroa???? Quer me deixar louco?

Na minha ilha eu não tive medo. Tive medo quando, de volta ao Rio, a Isabel falou: Você sabe qual é o tamanho desses sapos? E esticou os braços pra me mostrar.

Beijão (cheio de saudade também...)

Anonymous said...

É outra ilha sim, Roger. A primeira que eu conheci. Não fica tão longe de Coroa.
Bjs.