
Meu irmão Oriol partiu para uma viagem diferente da minha. Foi fazer o Camino de Santiago. Tem muita gente no Brasil interessada em ir a Espanha para fazer esse caminho (em vez de, sei lá, visitar Barcelona, Madri, ou Al-Andalus; ou de ir até o Cusco, que fica mais perto, e fazer o caminho do Inca), então, enquanto espero alguma das crônicas que ele disse que ia mandar, vou comentar um pouco sobre sua partida.
Meu irmão é um maldito ateu, ou seja, não esta cumprindo nenhuma penitência. Não é um peregrino, como ele me disse no último e-mail. Também não é um hippy, longe disso. Então, o que ele foi fazer? O que o levou a querer caminhar durante um mês e meio, até os pés ficar cheios de bolhas, calos e sangue? (Nota: Meus pais são mais inteligentes. Uma vez por ano, vão de carro até um ponto do caminho; caminham por cinco dias; voltam a Barcelona, e até o ano que vem. Fazem o caminho por trechos. E tem mais: um cara da turma que não caminha faz o roteiro do dia de carro, carregando as malas dos outros, comida, etc. E isto eu não deveria dizer, mas... acho que dormem em hotéis! Como a Igreja Católica aceita qualquer coisa, eles têm seus documentos carimbados igualmente...)
O Oriol escreveu aquele verso: "Caminante no hay camino, se hace camino al andar", mas isso serve mais para a minha viagem (a escrita de um romance) do que para entender a sua. E, também: "El camino está en el corazón de quien lo hace", que é uma cafonice que nem dá para entender. Mas ele já me avisou: "Muito tem se escrito sobre os caminhos e a vida, e não é a minha intenção me pôr a fazer frases".
Diz que é um desafio pessoal e espiritual... "bastante espetacular para minha humilde natureza". (Eu acho que é mais uma espécie de procrastinação enfeitada, mas não vou dizer isso.)
O que ele busca? "Paz, amor e fé." (Podia ter voltado a Salvador de Bahia.) Fé não católica, ele acrescenta (já disse: maldito ateu!). Quer, também, "carregar as baterias" para enfrentar uma nova etapa vital "mais ativa e produtiva sobretudo pelo que diz respeito à arte cinematográfica, e menos pelo que diz respeito à publicidade". (Ainda bem que ele não escreveu "a arte da"; mesmo assim, eu fiquei puto, porque nessa frase está implícito um não abandono total dessa atividade que, em meu entender, poderia ser extirpada da face da terra e ninguém sentiria sua falta; o cinema, entretanto, está precisando urgentemente de pessoas que o tirem do fundo do poço.)
Ele procura, também (mas acho que ele diz isso de cara a la galería, isto é, para que as pessoas vejam), "um rencontro com um estilo de vida mais simples e natural", que o leve "longe do doente mundo ocidental" e perto de "coisas tão básicas quanto dormir com sono, comer com fome, descansar por cansaço, e sentir o trino dos pássaros ao amanhecer".
Não sabe o que vai encontrar, mas acredita que vai encontrar alguma coisa, pois escreve, cheio de mistério: "Todo o mundo que fez o caminho me disse que encontrou
coisas".
Eu não sei o que ele vai encontrar, mas lhe adverti por telefone que dois preservativos era pouco. Respondeu que a aventura era espiritual, e que de qualquer jeito no caminho havia farmácias...
Não vai sozinho, vai com seu amigo Gerard, "e com todos aqueles irmãos que o destino ponha em paralelo aos meus passos, que tenham vontade de bater um papo e esquecer as dores do corpo (se são irmãs e lindas, muito melhor)" (ele que disse).
Prometeu à minha avó que não ia virar padre.
Disse que ver que tudo aquilo do que ia precisar cabia em uma mochila de 9 kilos lhe fez pensar.
Jurou aos irmãos (aos irmãos de sangue) que não tinha enlouquecido.
E, por último, me disse ao telefone que, como leitura, levava o Quixote. Eu lhe disse que melhor do que isso só os sete volumes de Proust, e ele me mandou calar a boca, me contou sua estratégia: não ia carregar o tijolão o tempo todo: ia ler e arrancar as páginas lidas. Eu só posso me curvar ante idéia tão engenhosa.
Vou pensar em uma recompensa para ti, irmão, se daqui a 45 dias chegas inteiro a Santiago.