Monday, November 23, 2009

Capítulo 15 (novo rascunho)

Abro os cadernos que trouxe comigo, os mesmos que um dia entreguei ao meu pai para que os guardasse fora do meu alcance. Embrulhou-os em papel de jornal e os deixou ao fundo de uma gaveta. Para evitar voltar a examiná-los à procura de respostas, esse dia também apaguei a maioria de meus e-mails. É ridículo como o neurótico busca afastar de si a tentação; e ao mesmo tempo é heroico. Uma pessoa sã não pode imaginar o esforço que para ele supõe, por exemplo, não comprovar pela segunda vez se apagou o fogão. Ele fica de pé, ensimesmado, pensando que não deve fazê-lo (porque, no fundo de si, sabe que não deve fazê-lo), mas logo, irremediavelmente, volta sobre seus passos e o apaga de novo. O acende e o apaga de novo. Algo o impulsiona, uma força à qual não pode resistir e que não é mais do que uma dúvida fabricada. O acende e o apaga. O acende e o apaga. Tantas vezes quanto precisar.

Numerei os cadernos por ordem cronológica, do primeiro ao quarto. Falta o quinto, o caderno de Nova York, que uma tarde em que não aguentei mais joguei pelo cano de lixo do 3° andar da residência estudantil. E do primeiro arranquei, não sei quando, as páginas que tratavam do fim do relacionamento com Taís. Essa semana faltei muito às aulas, fiquei trancado em casa, lendo e pensando. A cumprir, inconscientemente, uma espécie de penitência; a examinar, com consciência e rigor desmedidos, o que acabava de acontecer.

Taís foi a garota que, indiretamente, por ser uma pessoa boa e generosa, pôs ao descoberto meu egoísmo. O que hoje posso escrever sobre ela sem mentir é muito pouco - cabe num post-it: Ela era boa. A pessoa melhor e mais triste que jamais conheci. ("A bondade personificada", eu diria a J.-P., que sorriria, sem dizer nada.) No fim de uma aula, ouvi uma voz doce e infantil e estaquei. Sentada no tampo de uma mesa, uma garota falava com exaltação de um romance que tínhamos lido. Como o simples fato de eu parar, de unir-me à roda, pôde mudar tanto minha vida! Porque só alguém como ela poderia ter me causado tamanho choque moral.

Apaixonei-me por seus olhos, grandes e castanhos, redondos como o seu rosto e de um cândido entusiasmo. Tudo o que eu sentia vinha deles. Se lembrava-se do avô, de quando ele a buscava na saída da escolinha e a levava a passear no Park Güell, ou das manhãs de domingo, quando assistia com o pai às peças de teatro infantil da Fundação Miró (aproveitando para voar muito longe, esquecer que, no dia seguinte, devia voltar à escola), era em seus olhos que eu via a cena. Por isso eu gostava tanto de ouvi-la falar: ela se transportava. No bairro de La Salut, desconhecido para mim, onde Taís morava, o passado para ela devia ter sido mais feliz, por isso a alegria vinha de tão fundo. Feito os de uma criança, seus olhos brilhavam com fascínio em resposta a estímulos ínfimos, como o produzido pelo aroma de uma xícara de chá, ou pela visão de um entardecer especialmente luminoso, ou pela descoberta de um novo espetáculo de dança em cartaz (e ela se dava conta, era engraçado vê-la se ruborizar, refrear-se, como se existisse razão para isso, como se fosse excessivo se maravilhar com tão pouco), e logo, de repente e com igual facilidade, umedeciam-se, viravam dois poços sem fundo. Nos tempos da escola, ela me contou, quase não falava com ninguém, como se fosse muda; no segundo grau, ficava por semanas inteiras em casa, trancada no quarto, onde lia sem parar.

Andávamos pelas ruas de paralelepípedos, as ladeiras empinadas de La Salut, de casas baixas e caiadas, reluzentes sob o sol. Ela me assinalava lugares que conhecia bem, casas de familiares ou amigos, vivos ou mortos. Mostrava-me o bar onde o avô, de quem sentia tanta saudade, passava as tardes jogando dominó. Quando ela, criança, chegava, não havia dominó que valesse: ele se desculpava, levantava-se da mesa, e, rejuvenescido, saía a passear de mãos dadas com a neta, deixando os colegas de partida ciumentos. (Se algum deles ousasse imitá-lo, a dona do bar retrucaria: "Trabalhar no que, se você aqui ganha mais?".) Perdíamos-nos pelas trilhas e recantos do Park Güell - seu parque -, com a cidade aos nossos pés e o mar lá longe, que, visto da praça, parecia subir vertical até o céu.

Pensar que esses momentos não fazem parte da história. Se houvesse sido isso, só, quem sabe eu já teria escrito sobre a paixão desse pobre homem por Juanita. Mas, Anne, o que você acha tão estranho? Qual é a diferença, ao fim e ao cabo? Não sei se é solteira, se é ou foi casada, se tem amantes. Mas seja quem for que dorme ao seu lado, a quem você toca, com quem você fala, a quem você ama, no modo como você o vê não é mais real do que uma múmia. Ah, se não fosse porque é passageira! A paixão amorosa, l'amour fou, encheria o seu e todos os consultórios do mundo.

Houve mais, e o que houve estava em minha cabeça e nas páginas do caderno que arranquei. Nelas, para me eximir de culpa - com o dano já causado -, analisei o namoro com Taís da maneira que, primeiro no colégio e depois na faculdade, aprendi a definir, analisar, relacionar conflitos bélicos, romances, poetas, períodos artísticos, sistemas políticos, crises econômicas e tudo o demais. (García Lorca cabia inteiro em meia página; o crack de 29, em menos de 80 palavras.) A exemplo dos grandes filósofos, ergui um edifício absurdo, porém lógico e cheio de significado. Dissequei sentimentos e estados de ânimo, encontrei causas e efeitos, dei dimensão de categoria aos traços de caráter de Taís, reduzi-a. Até achar, no fim, verdades incontestáveis, que tracei com uma régua.

Nunca pensei tanto como durante esses meses (quando ainda era capaz de pensar, ou pensar era o que eu achava que eu fazia). Taís-boa e Taís-triste: não havia uma sem a outra. Triste porque não se queria. Taís-inocente e Taís-desvalida, resignada (alguém tinha lhe dito que nunca seria feliz). Gênio de sensibilidade. Entregue aos outros, por quem nunca deixou de se preocupar, Taís-sacrificada. Contente ao meu lado mas incapaz de, sozinha, ter-se em pé (porque seu contentamento não dependia dela). Amante das velhas tradições mantidas no bairro e dos romances da Barcelona de pós-guerra (Taís de um tempo que não era o atual). Na praça da estação de metrô de Vallcarca, abraçava-me, apertava-me com força, aferrava-se a mim. Eu, encostado na balaustrada, o rosto colado ao dela, sentia-a, mas não a olhava; impotente e medroso, olhava para as copas das árvores em cima de nós e afundava. Ela, olhando para o lado oposto, a ponte lá embaixo- ou o céu, afundava comigo, compenetrada. (A mesma garota a quem, em outros momentos, bastava um sorriso para me desarmar.) Você é bom, ela dizia; e eu respondia, citando Pascual Duarte: Yo, señor, no soy malo, que não é a mesma coisa.

Sinto vergonha de contar o que eu vi nela. Nem sei até que ponto eu não a inventei. E se passou tanto tempo, e essas conclusões arruinaram tanto tudo, que é improvável que recupere qualquer recordação fiel. O mais valioso que eu tenho são três fotografias, que guardei num envelope fechado. Taís com oito anos, na escola, de camisa pólo branca, abraçada com sua melhor amiga, as mãos uma no ombro da outra, sorrindo, ela com um espaço entre os dentes da frente, o cabelo curto, pretíssimo e copioso, em forma de capacete. Taís com catorze anos, em casa, de bailarina, com uma meia-calça bege e um vestido preto de alcinhas, os pés juntos, em meia ponta, o braço esquerdo e os dedos estendidos, como a acariciar o ar, o direito recolhido, um buquê de flores na mão, uma dessas flores no cabelo. Taís me abraçando, vinte anos, a boca entreaberta, os olhos, os lábios e as maçãs do rosto brilhando, o cabelo à chanel, com a franja desajeitada, suando; seu ar de menina, de garota mais nova, sua camiseta e seu vestido preto de bolinhas, de garota mais velha; um pinheiro e o mar atrás de nós.



Não preciso do histórico da faculdade para, comparando-os, saber que os resultados dos primeiros anos foram tão bons quanto os dos últimos. Como pôde ter sido assim? Se durante as provas, antes de começar a divagar, por exemplo, sobre questões referidas às atrocidades cometidas pelos espanhóis na conquista de América (lembro-me bem: filosofia política), eu dedicava longos minutos, fingindo olhar pela janela pensativo, a intentar decifrar o significado de ter dito a um amigo, dias antes, que eu não gostava de cachorros? Se antes de cada aula me trancava em algum dos banheiros da faculdade para tentar resolver a pergunta que me incomodava, para poder entrar na sala livre da perturbação? Passei incontáveis horas trancado em banheiros: de casa, da faculdade, de restaurantes, de bares. Primeiro vocalizando internamente, depois dizendo frases em voz alta, logo escrevendo nas portas e as paredes com o dedo indicador, como quem escreve no quadro-negro, mas sem deixar sinal; escrevendo várias vezes, pois quando o pensamento não acompanhava a escrita, ou a escrita não acompanhava o pensamento (o "a" não saía bem redondo), recomeçava a operação. Tentando com todos esses métodos.

Lembro de portas pintadas de roxo, de azul, de preto; da penumbra onde eu ficava de pé. De meu caminhar apressado pelo corredor, até o fundo do restaurante; de subir ou descer escadas, se o banheiro estava num outro andar. Não podia ficar lá dentro por mais de dez minutos, se me demorasse mais iria levantar suspeitas entre os amigos. Com sorte, via a resposta à pergunta, e então, rápido, sem dar tempo a uma outra se formar, voltava à mesa, com alívio, ansioso por participar da conversação. Mas essa nova pergunta aparecia, e de novo eu não estava mais ali. Então ficava quieto, fingindo que escutava, embora nada do que os amigos dissessem pudesse captar minha atenção. Só me restava esperar o café, quando, com um cigarro na mão, poderia conversar por cinco minutos mais.

2 comments:

ana said...

Roger, tu é bom.

Roger said...

Obrigadíssimo, Ana. =) (Tu também.)