Sunday, November 08, 2009

Capítulo 8 (novo rascunho)

J.-P. não possuía a beleza nem a juventude de minha vizinha Anne (que, nesses tempos, nem devia ser formada). Tinha olhos e nariz de coelho, a boca pequena e fina, com vincos no buço, os dentes e as unhas amarelados de tanto fumar. Comecei a visitá-la em janeiro de 97, um ano depois da aparição da doença, quando o medo do que estava me acontecendo pesou mais do que a vergonha de procurar essa ajuda. E o primeiro que fiz foi lhe pedir medicação.

Por um de meus cadernos, sei que foi após a leitura de um livro de Erich Fromm que tomei a decisão. Para Fromm, a neurose era a expressão de um conflito moral, e eu não tive dificuldade em associar o que estava fazendo ao que ele chamava de "ética autoritária" (e opunha à "ética humanista", a desejável). O temor da desaprovação e a necessidade da aprovação pelos outros eram em mim os motivos mais poderosos do juízo ético. Havia me tornado autoritaríssimo, criticíssimo, duríssimo comigo mesmo, e esses e outros sintomas me levaram a pensar que tinha uma neurose obsessiva. Soube que o caráter neurótico chegou a ser o foco da teoria e terapêutica psicanalíticas, e a doutora J.-P. se definia como psicóloga e psiquiatra "freudiana eclética". O termo neurótico obsessivo, porém, nunca saiu de seus lábios (o DSM IV não devia ser sua obra de referência: a bíblia da psiquiatria teria me encaixado no grupo dos indivíduos com TOC, tivesse eu um, dois, três ou todos os sintomas descritos, e sem considerar qualquer particularidade de caráter), e o fato de a doutora não batizar ou categorizar minha doença acredito que foi feliz.

6 comments:

Anonymous said...

Gostei bastante... mas não consegui resistir em deixar uma sugestão:

1. ".-P. não tinha a beleza nem a juventude de minha vizinha Anne - que, naquele então, nem devia ser formada. Tinha olhos e nariz de coelho..."
(quando vc diz que ela tinha olhos e nariz de coelhos, eu acho que deveria adicionar as características desses olhos e desse nariz. Usar a comparação de forma mais clara. Algo do tipo (mas muito melhor do que o que escreverei!): "tinha os olhos pequenos e acesos, e o nariz que lembrava a forma de um triângulo invertido; como os olhos e o nariz de um coelho." (Desculpe, mas é que sou, às vezes, chato e detalhista).

2. "(...)um ano depois que, de um dia para o outro, meu cérebro saísse dos trilhos (e se houvessem trilhos no cérebro, a frase não seria uma metáfora); quando pesou mais o pavor do que me acontecia do que a vergonha de ir ao psicólogo."

(cara, gostei demais da metáfora! E faz muito sentido, até porque explicas, no parágrafo abaixo, o problema do personagem - a neurose)


3. Vai deixar só a sigla DSM IV? Não seria bom colocar o que significa? Eu sei, mas pode ser que outro leitor não o saiba. Mas sei que existem pessoas que não entenderiam essa sigla. Por mais que seja bastante comum a busca por psicólogos, principalmente nos dias de hoje, penso naqueles que não buscam, não leem e/ou não se interessam por esse tipo de profissional, e portanto não estão próximos de um entendimento mais direto com determinados termos, abreviações, siglas, etc., da área da psicologia e psiquiatria.

Eu escrevi isso, porque me preocupo com a clareza do que se escreve. É maravilhoso ler um texto inteligente, com palavras bem colocadas, claras.. ainda que a gente precise do dicionário pra lembrar de algum sinônimo, por exemplo. Mas não adianta isso tudo se as coisas não ficam bem sinalizadas (se, por exemplo, existe uma palavra no texto que pode ser de fato importante para a melhor compreensão da personagem, da história, do seu enredo, etc.), se ela não foi explicada antes ou depois. E, principalmente, se essa palavra não tá num dicionário comum.

Pra finalizar:

"O termo, porém - neurótico obsessivo -, nunca saiu de seus lábios..."

(não sei se é pior ouvir um diagnóstico desses de um médico, do que pensar que realmente se tem esse problema. No fim da leitura, me veio intensa uam coisa que reflito há anos: nós somos os nossos mais perigosos inimigos).

Um abraço,

A.E

Roger said...

Nossa, você é muito bom crítico, não deixe de comentar! :) "Olhos e nariz de coelho": nunca gostei dessa descrição, a verdade é que a deixei aí à espera de algo melhor... Vou ver!

Isso dos trilhos, o problema é que é uma metáfora muito usada (acho), então o narrador tem que dizer isso, que sabe que é quase um clichê, mas que define muito bem o que se passa na mente nesses casos.

O DSM... Haha! :)) Tinha um parágrafo mais longo sobre isso que apaguei. Depois já pensei nisso que você diz, só que o nome completo é muito longo, atrapalha o texto. Vou ver o que faço também com isso, mas você está muito certo.

E, quanto ao neurótico obsessivo, a idéia que eu quis passar, e não consegui, é que é bom essas doenças não ser categorizadas, porque cada caso é diferente. Gosto de um parágrafo do Cemitério dos vivos, de Lima Barreto, que diz assim: "Há, como em todas as manifestações da natureza, indivíduos, casos individuais, mas não há ou não se percebe entre eles uma relação de parentesco muito forte. Não há espécies, não há raças de loucos; há loucos só".

Enfim, muitas coisas a serem melhoradas!

E acho que sim, nós somos os nossos mais perigosos inimigos. Também, o homem é o lobo do homem. E a nossa sociedade... bom, sobre isso tenho meia escrita uma breve resenha de um livro de Philip Roth que acabei de ler e vou postar.

Obrigadão!!!

Abraço,

Roger

R. Luiz said...

Belo texto homem, muitas metáforas... E eu adoooooro elas, :^) são tão bestas, divertidas, criativas "Tinha olhos e nariz de coelho", "meu cérebro saísse dos trilhos" - kkkkk - Maravilhoooooso, parabéns Ru, e elas ainda induz ao leitor a buscar, pesquisar a tal imagem referências no seu melhor Sistema de Informação - O Cérebro - Discordo do comentário do rapaz ai em cima, achei os "olhos e nariz de coelho.." bastante claro e pq não dizer resplandecente - rsrsrs- A idéia do escritor (ou uma delas) é fazer o leitor abusar de tua cachola, sem força muito... ... fazer de uma forma natural, gozadora, entede...? Agora concordo plenamente com ele Roger, a sigla DSM IV não deveria vim assim tão "solta"... É inerente a busca por palavras, ou neste caso, uma sigla, ainda mais hoje com a ajuda da internet, que és uma grande facilitadora de informação, mas colocando certos significados de algumas palavras, para nós leitores, realmente facilitar a leitura, tornando esta até mais suave, menos chata (q não é o teu caso ;^) ta).

"nós somos os nossos mais perigosos inimigos"

Adoro isto!
A cada dia perco (Eu Ronaldo) perco uma batalha comigo mesmo... me destruo e me alto curo... Estarei esperando a resenha deste livro de Roth, me pareceu interessante.

Dois abraços

Roger said...

Obrigadão, Ronaldo!

Mas pensei em algumas frases que podem melhorar essa parte da J.-P. Amanhã eu mexo nisso...

E força sempre! Para ganhar essas batalhas!

Abração!

Unknown said...

Achei esse trecho especialmente interessante... podemos conversar sobre este também??

Roger said...

Claro Raquel! :))